De: Manuel Moreira da Silva - "Adenda a Pedro Aroso"
Correndo o risco de desviar o assunto do essencial - a discussão do nosso património e o destino que lhe deve ser dado - tentarei partilhar algumas informações que obtive sobre o Freixo e sobre as várias fases por que o projecto de recuperação passou.
No decurso da montagem da exposição que referi e que esteve presente na Alfândega do Porto a partir de Dezembro de 2005 (Ciclo Reunião de Obra, Ordem dos Arquitectos - Secção Regional Norte), tive a oportunidade de ter algumas conversas com o arquitecto José Bernardo Távora e com o arquitecto Marco Fernandes, ambos co-autores do projecto de recuperação do Freixo com o arquitecto Fernando Távora. No decurso de uma dessas conversas foi abordado o assunto da transposição das antigas moagens para a margem do rio, libertando o acesso principal ao palácio e foi referido que numa avaliação preliminar dos custos se chegou a um orçamento de cerca de dois milhões e meio de euros (o que incluía o corte das paredes do edifício ao nível do solo e transporte sobre carris para novas fundações junto ao rio, a ser feito por uma empresa estrangeira especialista neste tipo de trabalhos - o processo é comum e pode ser visto no Discovery Channel no programa House Movers), verba que, em absoluto, é bastante elevada mas no contexto do projecto se dilui bastante.
Recordo que fizeram parte da recuperação do Freixo:
- - a transposição da Estrada Nacional 108, que passava tangente ao palácio, para a parte de trás do monte, permitindo a criação de um parque que remataria um enorme parque urbano que acompanhava os rios Tinto e Torto, que têm a sua foz junto ao palácio;
- - a recuperação de todo o interior do palácio, em avançado estado de degradação, agravada por um incêndio ocorrido já quando era propriedade do Estado;
- - a construção de um pavilhão das Descobertas, para comemorar os 500 anos do descobrimento do Brasil, que acabou por não ser concluído pela recusa sistemática do Museu da Imprensa em sair da fábrica que ainda lá se pode ver;
- - todos os arranjos exteriores, que entretanto ficaram inacabados também por culpa do Museu da Imprensa.
No orçamento total da obra, a mudança do edifício das antigas Moagens Harmonia, actual Museu da Ciência e da Indústria, representava menos de 10%. Não foi essa a justificação para abandonar essa opção; antes foi a posição da Câmara e do IPPAR que consideravam o edifício um património tão significativo como o próprio palácio, fazendo parte da história do conjunto, que seria desvirtuado ao mudar-lhe a implantação. Não concordo. Considero o acto de implantar uma fábrica no principal eixo de acesso de um palácio barroco o grau zero da inteligência urbanística, arquitectónica, histórica, ... e prova de uma balança de prioridades bastante desequilibrada. E mesmo nos nossos dias, por muito notável que seja, ao ser um dos primeiros exemplares importantes da arquitectura industrial do Porto, com um sistema de construção pré-fabricado em ferro de razoável interesse histórico, a implantação do edifício não é seguramente o seu ponto mais brilhante, nem tão pouco me parece relevante a ponto de constituir uma das mais valias que o transforma em património; está ali porque, para que a construção fosse mais rápida e económica, o proprietário aproveitou uma das plataformas de jardim criadas pelo projecto de Nasoni; lamentavelmente foi a do acesso principal. Foi pena não se ter cumprido esta proposta do arquitecto Távora; recuperava-se a harmonia do Palácio do Freixo e não haveria hoje em dia a ameaça de se construir uma marquise para ligar o palácio ao edifício das antigas moagens, impossibilitando a visão do alçado principal do palácio.
Como se poderá perceber pelos meus comentários, sou absolutamente contrário à instalação da pousada no Palácio do Freixo (não o sou em relação ao edifício das antigas Moagens Harmonia) por considerar incomportável a compatibilização daquela casa com as infraestruturas necessárias a servir um hotel de luxo com 75 quartos (digo-o com consciência porque estou a projectar vários hotéis do mesmo segmento e não há sítio para meter casas de banho, cozinhas industriais, tubagem de renovação de ar compatível com a legislação, ...), e por considerar impossível a salvaguarda do património decorativo do palácio (pinturas de Nasoni, delicadíssimos estuques na sala de jogo do piso inferior, ...) com um edifício a ser utilizado continuamente por largas dezenas de pessoas, entre as quais estarão, seguramente, crianças.
Outros usos seriam muito mais adequados ao espaço:
- - um museu do Douro complementar ao que vai ser criado na Régua, articulado com os passeios de barco que partem do lado oposto do rio, mesmo em frente ao Freixo;
- - um centro de estudos do barroco nortenho, do qual este edifício é um exemplar notável;
- - ou qualquer outro programa das dezenas de sugestões que o arquitecto Távora fez, em conjunto com outros cidadãos notáveis da cidade, no seu abaixo-assinado dos anos 70.
E, ao contrário da opinião transmitida pelo Executivo da Câmara, abstraindo-me do problema do edifício, não considero o sítio estrategicamente relevante para a implantação de um equipamento deste tipo. Mais haveria a ganhar com a sua implantação num dos dois sítios que referi no post anterior, ou:
- - na zona do Ouro, recuperando aquela grande fábrica abandonada a Sul do Bairro do Aleixo e, já agora, todo o bairro, criando um grande atravessamento Norte-Sul (prolongamento da rua de Arnaldo Leite), semelhante à rua de D. Pedro V, o que melhoraria significativamente a vivência daquela zona degradada;
- - na zona de Miragaia, animando a criação de uma ligação (pedonal) entre a zona das Virtudes e a Alfândega;
- - no convento de S. João Novo, agora que se anunciou que os tribunais vão ser todos transferidos para uma Cidade da Justiça;
- - na avenida da Ponte, já que se abandonou a construção do Museu da Cidade.
Tenho ainda imensa dificuldade em perceber o negócio a que a Câmara chegou com o Grupo Pestana. Pelas contas que fiz (rápidas e com o rigor possível a quem não tem toda a informação) a Câmara receberá pela cedência por 30 anos de um conjunto que custou bem mais de 20 milhões de euros (provavelmente mais de 25), menos de 6 milhões de euros a 30 anos (ver divisão no post anterior), e isto é o valor máximo, tendo por base uma ocupação de 100% dos quartos da pousada ao longo dos 365 dias do ano. E no fim receberá o edifício num estado bem diferente do actual. Pode ser que, mesmo após a decisão tomada, se promova agora uma discussão sobre o destino a dar ao Palácio do Freixo, à semelhança do que se passou com a Ota. Para quem quiser conhecer um pouco melhor o palácio do Freixo e a intervenção do arquitecto Távora sugiro, para além da visita ao próprio edifício, antes da inauguração da pousada, uma visita a este endereço.
Quanto ao comentário de Alexandre Ferreira sobre a menor relevância da discussão do problema da casa da Avenida do Brasil, tenho que dizer que não concordo, porque parte dos problemas estruturais de pobreza, marginalização, insegurança, ... que existem na nossa sociedade são devidos a uma imensa falta de cultura urbana, arquitectónica e patrimonial na nossa sociedade. A discussão sobre a manutenção daquela casa pode (e deve) ser extrapolada para o que pretendemos, enquanto sociedade, para os nossos centros históricos, para as nossas periferias, para os nossos aeroportos, para as nossas estradas, para as nossas praias, para os nossos rios, para o Alqueva, ... A falta de discussão dos nossos modelos de desenvolvimento (os tais que agora se querem sustentáveis) permitiram e permitem a criação de periferias sub-urbanizadas que se estendem da Galiza a Aveiro (só não passam mais abaixo por causa das matas da Portucel) que levarão o país à bancarrota quando a União Europeia nos obrigar a colocar redes de esgotos. Também a legislação que enquadra os modelos de desenvolvimento da nossa sociedade entra na discussão; o post de Pedro Aroso "Com Conta, Peso e Medida" lembra-nos a lei das rendas, maior responsável pela degradação da Baixa, que impossibilita muitas vezes (por impossibilidade de retorno do investimento) a recuperação do património edificado. Não será unicamente esta a justificação da existência daquela ruína duas vezes romântica (por ser Neo e por estar em ruína), mas também não ajudará.
Aproveito para pedir desculpa a todos os que lerem as minhas contribuições pela dimensão das mesmas e agradecer a oportunidade de as ver debatidas.
Com os melhores cumprimentos,
Manuel Moreira da Silva