De: Manuel Moreira da Silva - "Comentário sobre o Palácio do Freixo"
Na sequência da atenção que tem sido dada ao Palácio do Freixo graças à exposição sobre Salvador Dali que ali se encontra, e ajudado pela discussão sobre o nosso património a respeito da casa neo-Manuelina da Avenida do Brasil, venho por este meio expor a minha opinião sobre a instalação de uma pousada no Freixo.
Cerca de 1750, o Palácio do Freixo é edificado segundo projecto de Nicolau Nasoni para o Deão da Sé do Porto, D. Jerónimo de Távora Noronha Leme Cernache, que morre antes de ver o conjunto completamente terminado. Já fora das mãos da família é barbaramente desfigurado, interior e exteriormente, situação ainda visível pela presença do edifício das antigas Moagens Harmonia, construído em cima do principal pátio de acesso ao palácio, de modo a que o seu proprietário apenas tivesse que dar vinte passos para se deslocar entre a sua residência e o seu trabalho. Há cerca de 30 anos entra na posse do Estado por cerca de um milhão e meio de euros, em avançado estado de degradação e assim se mantém até meados dos anos 90, quando animados pela certeza da vitória do Sim na regionalização, os nossos responsáveis políticos decidem transformar o palácio na sede da presidência da região, elaborando um programa com base no qual a obra seria elaborada.
O arq. Fernando Távora lidera uma equipa que durante anos luta por recuperar a dignidade do conjunto. Acaba por não conseguir terminar a obra, como se pode constatar no local, ficando pelo caminho o transporte do edifício das Moagens Harmonia, para uma nova localização mais próxima do rio, que permitiria repor o acesso original do palácio (entretanto recusada pelo executivo da C.M.P. à época liderado pelo dr. Fernando Gomes) e por concluir o eixo Poente do jardim e o Pavilhão das Descobertas (comemoração dos Descobrimentos portugueses) por recusa do Museu da Imprensa em sair das instalações que lhe estavam afectas, a arborização do morro a Norte e a construção da marina projectada (substancialmente diferente da que entretanto foi construída, em completa desarticulação com o projecto anterior).
Em 2003, após quatro anos de estudos e projectos, três anos de obra e mais de vinte milhões de euros investidos, o dr. Rui Rio, presidente da C.M.P., inaugura a obra (inacabada) sem lhe atribuir qualquer uso.
Em 2005, surgem notícias da possibilidade da transferência do Palácio do Freixo, edifício das Moagens Harmonia e envolvente para a Enatur, empresa privada propriedade do Grupo Pestana, para a instalação da maior pousada de Portugal. A Pestana Pousadas informa que:
- - Se comprometeu a pagar a transferência do Museu da Ciência e Indústria para a Alfândega do Porto;
- - O Museu da Imprensa "não será em nada afectado com o projecto da instalação da Pousada no Palácio";
- - O Palácio do Freixo "irá manter-se aberto ao público", e a manutenção dos seus jardins ficará a cargo do próprio grupo empresarial;
- - A Pestana Pousadas iria pagar um milhão de euros pela cedência dos dois imóveis, verba esta que será dividida em três «tranches»: 10% na data da assinatura do protocolo, 60% na altura da emissão da licença de construção e os restantes 30% aquando da emissão da licença de utilização turística e da abertura da Pousada, prevista para 2008 (no total, 50% menos que o que o Estado pagou pelas ruínas);
- - A proposta tinha uma renda mensal de cinco mil euros, actualizável anualmente em função da taxa de inflação, durante os primeiros cinco anos. Ao sexto ano, a autarquia passa a receber 2500 euros mensais, mais 2% da facturação da pousada.
Desde então mais notícias vieram a público:
- - O projecto será da autoria da empresa David Sinclair e associados, que inclui uma cúpula de vidro a ligar o Palácio às Moagens, afastando cada vez mais a memória do acesso a Nascente e um centro de eventos no cruzamento do eixo do jardim com o acesso principal a partir da nacional 108, que destrói o acesso Poente ao Palácio e a coerência axial da obra, característica essencial dos projectos de Nasoni, que se pode ver também, por exemplo, no eixo da Quinta da Prelada.
- - A Pestana Pousadas garante que a intervenção nos imóveis será mínima e que as fachadas não serão alteradas (excepto seguramente a marquise-estufa que vai fazer a ligação entre a Moagem e o Palácio).
Algumas destas informações fui sabendo porque participei na montagem de uma exposição da Ordem dos Arquitectos sobre o imóvel e tive acesso a alguns dos documentos sobre a negociação do imóvel entre o proprietário e o Estado, e sobre as negociações entre a Câmara Municipal do Porto e o Grupo Pestana. Deste último processo retiro dois aspectos que muito me preocupam. O primeiro é que a cidade do Porto e o país irão perder durante (pelo menos) 30 anos um dos mais extraordinários edifícios civis barrocos do nosso território, recebendo como compensação monetária uma pequena parte do que lá investiu (e ainda oferece como "brinde" o edifício das Moagens Harmonia). O segundo é que após muitos anos de luta para recuperar uma das obras mais significativas da nossa cidade (o primeiro acto público em que participou foi um abaixo-assinado nos anos 70), o arquitecto Fernando Távora (recentemente falecido) e todos os que com ele trabalharam verão a sua obra ser intervencionada por um estúdio de arquitectura de qualidade não comprovada, escolhido seguramente por critérios economicistas pelo Grupo Pestana, com intenções para o imóvel que deixam qualquer estudante de arquitectura em pânico. Um último aspecto que gostaria de ressaltar é o da falta de bom senso de tudo isto - o Palácio do Freixo não é mais que uma grande casa, que terá que sofrer violentas transformações (que destruirão a integridade dos espaços interiores - tão importantes como as fachadas) para ser capaz de albergar equipamentos como cozinhas industriais, balneários de funcionários, e todos os outros necessários ao funcionamento de uma pousada (ou neste caso a MAIOR POUSADA DO PAÍS) - recordo que o edifício foi recuperado para ser a sede da presidência da região Norte, dando apoio a uma dezena de pessoas, tendo para isso, as infraestruturas mínimas necessárias (pequena cozinha, poucas casas de banho e NENHUMA no andar nobre). Numa cidade com tantos edifícios de grande escala que poderiam albergar a pousada (como o palácio das Cardosas, o convento de Monchique, o convento da Serra do Pilar, ...), será esta a melhor opção?
Com os melhores cumprimentos
Manuel Moreira da Silva