De: Judite Maia Moura - "Escarpa do Rio Douro IV"
O sonho de vir a ter um percurso de sonho
Acabámos o capítulo anterior mencionando o acesso ao Bairro da Aguada. Ele faz-se, actualmente, pelo número 65 da Rua Gomes Freire. Já em Fevereiro 2010, quando procedemos à identificação de lixeiras para o “Limpar Portugal”, nos apercebemos de que havia muito lixo entre a linha férrea actual e a Marginal, mas não conseguimos descobrir como lá chegar. Em 2012, na nova identificação de lixeiras para o “Limpar Portugal”, através dos moradores das ilhas da Rua Gomes Freire, que já mencionamos atrás, conseguimos descobrir esse acesso, onde afinal tínhamos estado várias vezes em 2010, sem lhe encontrar a continuação… A passagem do número 65 acede a escadas que ladeiam a linha férrea actual e, quando parecem ter terminado numa parede, afinal viram à direita e continuam por um túnel por baixo da linha férrea, prolongando-se ainda por mais uma série de lanços. Um dia deu-nos a curiosidade de contar os degraus e chegámos a 155, alguns deles sendo patamares e não propriamente degraus.
Mal saímos do túnel já com uma paisagem magnífica à nossa frente, as ruínas começam a aparecer, consequências de uma derrocada em 2001 e posterior incêndio em 2010. Essas ruínas, em vez de terem sido imediatamente demolidas, para evitar mais perigos, ficaram por ali e assim foram servindo para armazenamento de toda a espécie de lixo, desde mobiliário, sanitários, vestuário e mesmo lixo doméstico. Só mesmo vendo! Mas, no meio desta lixeira monstruosa, há casas habitadas. As primeiras aparecem ainda ao longo das escadas, logo à saída do túnel, do nosso lado esquerdo, depois de se subir outro lanço de escadas diferentes; as outras casas estão depois no fundo, mesmo ao lado do Ramal da Alfândega, tendo estas sido já mencionadas no nosso capítulo III.
Junto a estas casas está aquela a que, desde 2010, mesmo sem a vermos de perto, chamávamos a lixeira grande. Inacreditavelmente grande! Seguindo para a direita, no mesmo sentido que vínhamos a seguir anteriormente, desde Campanhã, tínhamos, logo a seguir, aquela a que chamávamos “a casa suspensa”, porque, na realidade, ela estava meia assente na rocha e meia suspensa em ferros, algo surrealista. Apenas mais uns metros, agora do lado direito, e mais uma casa grande totalmente em ruínas e, a seu lado, outra mais baixinha, também em ruínas, mas onde viviam emigrantes, eventualmente clandestinos, pois sempre foram muito fugidios. Ainda um pouco mais à frente entra-se no segundo túnel do percurso. Ao longo deste percurso até ao túnel, embora mais disperso, o lixo continuava, nas suas mais diferentes espécies; nesta zona ele era lançado ainda mais de cima, do Bairro de São Nicolau, de que viremos a falar mais tarde. Curiosamente, e também lamentavelmente, do lado esquerdo existem várias escadas em pedra, que descem para a Marginal, mas que se encontram igualmente muito mal tratadas.
E aqui surgiram as primeiras acções de limpeza de Voluntários da AMO Portugal, cheios de boa vontade e de esperança de melhorar um espaço sem igual na nossa cidade. Fez-se a primeira acção em Março 2012, na nova edição do “Limpar Portugal”, outra em finais de Maio e depois ainda algumas mais pequenas posteriormente. Na acção de Maio limpou-se uma grande parte da lixeira grande e batemo-nos junto da Câmara do Porto para colocarem ali um colector, tipo manga, para o lixo doméstico, a descarregar para a Marginal, tal como existe na Calçada das Carquejeiras, pois consideramos que é preciso ter em conta a componente humana e que não é fácil, sobretudo com temperaturas superiores a 30° no Verão ou com enxurrada pelas escadas abaixo no Inverno, subir 155 degraus ainda com a carga do lixo a dificultar a subida. Infelizmente foram pedidos feitos em vão. Apenas uma verdade tem de ser dita: a Divisão de Limpeza da Câmara do Porto sempre colaborou com simpatia e prontidão na cedência de materiais e na recolha do lixo que os Voluntários iam apanhando e tentou mesmo limpar a lixeira grande, depois de nos terem recomendado que não o fizéssemos, por falta de segurança, mas ela aluiu, de facto, e desistiram.
Tínhamos orgulho no que tínhamos conseguido fazer e acompanhámos as nossas acções de limpeza com acções de sensibilização junto dos moradores, para que não voltassem a lançar lixo para a Escarpa: mensagens escritas, distribuídas porta a porta; apresentação de imagens em Power Point (uma num café, durante uma sessão de karaoke, e outra durante o baile de São Pedro, no intervalo); e fez-se mesmo uma cascata se São João com lixo apanhado da Escarpa, envolvendo as Crianças ali moradoras, que esteve com essas Crianças no Largo das Fontainhas durante todos os festejos de São João. Os resultados pareciam começar a ver-se. No entanto, entre Julho e Agosto, a Câmara do Porto, através da GOP – Gestão de Obras Públicas, resolveu mandar “rapar” a Escarpa, com vista a um levantamento topográfico pormenorizado. Raparam a vegetação e deixaram ficar toda aquela imensidão, juntamente com o lixo que tinha agarrado, ali estendida ao longo de todo o percurso que os Voluntários tinham primorosamente limpado. Hoje todo aquele corredor está pior do que estava antes de os Voluntários começarem a limpar e a lixeira grande está novamente tão grande como antes de lhe mexermos.
Em Setembro 2012 rebentou subitamente uma conduta de água ali mesmo perto da “casa suspensa” e desta vez ela não resistiu, desfazendo-se quase por completo. Da mesma forma, a casinha que havia um pouco mais à frente, precisamente no local do rebentamento, onde viviam emigrantes, ficou como que cortada com uma faca a meio da sua altura. Finalmente, com o temporal de Janeiro 2013, o pouco que ainda existia da “casa suspensa” desmoronou-se totalmente, incluindo os ferros que a mantinham suspensa.
E, nesta zona, temos ainda mais de insólito. Quando, em Fevereiro, fizemos a caminhada pela Marginal, identificando lixeiras, a água do rio ia tão baixa que até tirámos uma fotografia a um dos pilares da Ponte São João, mostrando as marcas do nível da água. Qual o nosso espanto quando, a dada altura, mais à frente, vimos dois grandes esgotos a descarregar para o rio, precisamente nesta zona da Aguada. Um deles vem, nada mais nada menos, por um cano escarpa abaixo, que desaparece enterrado na rua e depois volta a aparecer descarregando para o rio. Agora já temos a certeza de que esse cano leva os esgotos daquelas casas, já que não têm saneamento devido. Mas, infelizmente, ainda vamos ver pior…
... Publicado também no site da AMO Portugal. Ver álbum de fotografias aqui.