De: José Machado de Castro - "O sector financeiro deve prestar contas?"
Caro Frederico Torre
Sobre o funcionamento do sistema financeiro foi criada uma espécie de “caixa negra” que só alguns “especialistas” poderiam decifrar. Por isso, reconheço que o ponto de vista que apresentei sobre a actuação da banca entra em choque com o pensamento dominante. Julgo por isso muito importante que quem trabalha no sector financeiro (como é o caso do Frederico Torre) dê os seus contributos para toda a gente interessada poder entender o que se está a passar na banca, seguros, fundos de pensões ou fundos de investimento imobiliário quanto ao seu papel de investidores institucionais. Mas também julgo que o Frederico Torre não resistiu à prática, infelizmente tão habitual, de refletir, pouco, sobre a mensagem, e tentar, muito, desqualificar o mensageiro. É certo que não basta ler o “relatório de estabilidade financeira do BdP” para alguém se tornar perito no sector financeiro. Mas o que faz “A Baixa do Porto” ser um espaço tão especial para a cidadania é também o não ser necessário apresentar um cartão, de visita ou outro, para ter palavra. São as ideias, os conteúdos que valem por si, ou não. Pergunta se sei “alguma coisa de como funciona o sistema financeiro…“ ...Mais de vinte anos de actividade profissional neste sector, alguns artigos publicados e o exercício esporádico de docência no ensino politécnico justamente na área financeira, terão certamente fornecido elementos para escrever, com adequado rigor técnico, sobre a actual fase do sistema financeiro. Mas acrescento, os bons profissionais do sector, todos os que quiserem tomar posição fundamentada (e não exprimir apenas meras generalidades) não podem prescindir de conhecer os trabalhos rigorosos que o BDP ou o Instituto de Seguros de Portugal têm elaborado sobre a constituição dos activos a que legalmente a banca, os seguros e os fundos de pensões estão obrigados.
E voltamos à questão central: nos seus activos, a banca, toda a banca, detinha nos finais de 2010 apenas 19 mil milhões de euros de dívida pública portuguesa, menos de 7% dos seus activos... É pouco, demasiadamente pouco, mesmo do ponto de vista da garantia das suas obrigações legais. Ora o que tem sido dito e redito à população é que os bancos não têm concedido crédito à economia, porque… tiveram de comprar muita dívida pública portuguesa… E tal não corresponde à verdade. O citado relatório do BdP confirma que os bancos portugueses apresentam uma menor exposição a títulos de dívida pública do que outros sistemas financeiros da área do euro. E se se comparar os 19 mil milhões de euros de dívida pública portuguesa adquirida pela banca (ou os 6 mil milhões de euros de títulos de dívida portuguesa investidos pelo sector segurador para fazer face às suas responsabilidades legais no montante de 52 mil milhões de euros, in “Relatório de evolução da actividade seguradora - 1º trim. 2011" - ISP - págs. 14-16), com os 16 mil milhões de euros detidos pelos particulares em certificados de aforro e do tesouro e que representam quase 11% dos 151 mil milhões de euros do total da dívida pública portuguesa), percebe-se que a componente de “investidor institucional” do sistema financeiro não está a ser devidamente respeitada. As famílias portuguesas, apesar das dificuldades económicas conhecidas, detêm como poupança quase o mesmo valor de títulos de dívida pública comprada por toda a banca.
A banca fez as suas escolhas, financeiramente imprudentes, insisto. Decidiu não comprar títulos de dívida do Estado português. O presidente dum dos principais bancos veio até dizer, ufano, que já não comprava dívida pública portuguesa desde 2009. Mas será que os outros investimentos, as outras compras da banca em dívida pública estrangeira (de Angola, Irlanda, Itália ou Polónia), ou em acções e outros títulos de empresas privadas, em unidades de participação em fundos de investimento, são mais seguros e fiáveis, são créditos com mais qualidade? É que a (pouca) dívida pública portuguesa adquirida, essa está toda severamente avaliada pelas agências de notação. Mas os restantes investimentos da banca, que notação têm? Ou não foram sequer objecto de qualquer avaliação das mesmas agências?
Pelo papel decisivo que os investidores institucionais têm hoje nas economias nacionais (podem arrastar um país para a bancarrota), as escolhas dos banqueiros têm de respeitar as exigentes regras técnicas do sector… É que o dinheiro utilizado para concretizar as escolhas, opções ou prioridades dos banqueiros não é deles, nem dos accionistas, é em grande parte dos depositantes… A falência (só não concretizada pela injecção de 85 biliões de dólares da Reserva Federal norte-americana) da AIG, a maior seguradora mundial, é um exemplo a reter: não resultou dum qualquer azar no exercício da sua actividade, mas apenas e só porque se afastou completamente das regras de boa gestão fixadas há muitas décadas. Quando as escolhas do sector financeiro, como investidores institucionais, abandonam a prudência financeira e passam a ser parte do combate politico-partidário, o desastre financeiro pode ficar mais próximo. Por isso é hoje tão importante um maior escrutínio público e é hoje muito maior a responsabilidade dos quadros e técnicos bancários (como o Frederico Torre) na exigência aos decisores da banca para o cumprimento rigoroso das “boas práticas” no sector financeiro.
José Machado de Castro, jurista