De: Frederico Torre - "Resposta a José Machado de Castro"
Após a leitura do seu post "Banqueiros à beira de um ataque de nervos...", não posso deixar de lhe perguntar... Sabe realmente alguma coisa de como funciona o sistema financeiro e concretamente o sistema bancário? É que não basta passar os olhos pelo relatório de estabilidade financeira do BdP para se tornar perito no assunto... Sem tempo para muito mais (uma vez que explicar com o mínimo de clareza todo o sistema financeiro e bancário demoraria alguns anos de curso universitário), deixo-lhe só um comentário a esta frase:
"Observando apenas a banca, verifica-se que no final de 2010 os títulos de dívida pública portuguesa, no valor de 19 mil milhões de euros, representavam menos de 7% do total de activos de todos os bancos portugueses. Tendo em conta que a banca também possui dívida soberana de países estrangeiros, constata-se que mais de 80% dos activos dos bancos são constituídos por outros valores, acções e obrigações de empresas privadas, unidades de participação em fundos de investimento e imóveis."
Caso não saiba, todos os empréstimos que um banco concede fazem parte dos seus activos... Outra vez e a negrito... todos os empréstimos à habitação, automóvel, para consumo, a empresas ou ao Estado (aqueles que fazem funcionar uma economia moderna) são activos do banco! Considerando isso, obviamente que os títulos de dívida pública representam apenas 7% do balanço dos bancos... É que os empréstimos a clientes representam algo como 70% a 80% dos activos! Aquilo que chama de "outros activos, acções e obrigações de empresas privadas, unidades de participação em fundos de investimento e imóveis" na verdade representam menos de 20% dos activos do banco e não os mais de 80% que refere! E os bancos têm de ter estes activos... Melhor, são obrigados a ter estes activos pelos reguladores! A actividade principal de um banco é bastante fácil de compreender... Na sua forma mais simples, é pegar nos depósitos que recebe mais o financiamento que consegue junto do mercado interbancário, através das obrigações que emite ou junto do BCE, e emprestá-lo com o melhor risco/retorno que conseguir, ganhando o spread pelo risco para si. A isto dá-se o nome de alocação eficiente de capital (algo que está muito longe de ser feito, mas isso deixo para outra discussão). Mas o banco não controla quando cada um de nós vai levantar os seus depósitos e por isso tem de ter uma percentagem dos seus activos em activos financeiros com liquidez suficiente (obrigações do Estado e das empresas, acções, depósitos no banco central, no mercado interbancário) para poder rapidamente transformá-lo de novo em dinheiro caso tenha mais pessoas a levantar depósitos que o que estava à espera... Isto se não queremos correr o risco de um dia chegar ao multibanco e não sair de lá nada...
Não posso deixar de comentar também esta frase, outra prova de que realmente as questões financeiras não parecem ser o seu prato forte:
"Dito de outra forma, ao recusarem a compra de dívida pública portuguesa, os bancos forçaram a que as obrigações do tesouro emitidas pelo Estado português tivessem de ser vendidas no chamado mercado secundário, dominado por especuladores, que compram títulos de dívidas públicas mas com juros altíssimos"
Os bancos não recusam nem deixam de recusar comprarem dívida pública. Simplesmente investem os depósitos que recebem nos activos onde acreditam que vão conseguir tirar melhor rentabilidade considerando o seu risco, seja em dívida pública, empréstimos a empresas, a famílias, acções, obrigações ou no mercado interbancário. O problema dos bancos portugueses foi exactamente o contrário... começarem a ver yields da dívida pública acima de 5% e terem comprado centenas de milhões de euros convencidos que o retorno era muito alto considerando o baixo risco dessa dívida, para agora chegarem à conclusão que esse mesmo risco afinal era muito maior que o que julgavam! Ao ponto de pelo menos os Gregos não terem maneira de a pagar de volta, e ainda vamos ver se os Portugueses têm, e depois os Irlandeses, os Espanhóis ou os Italianos... Para além disso, a dívida pública sempre foi transaccionada nos mercados secundários! Como também o é a dívida pública da Alemanha ou dos EUA, dois países cuja dívida esses "especuladores" estão disposto a comprar a juros abaixo de 1% ao ano... Aliás, a dívida de todos os países desenvolvidos é transaccionada em mercados secundários, é exactamente isso que permite aos países emitirem dívida e pagar o "Estado Social" que temos hoje em dia! Agora, é claro que o preço que cada um paga tem de reflectir o risco de cada país... E se durante uma década conseguimos convencer esses "especuladores" que éramos tão bem comportadinhos como os Alemães ou os Nórdicos, parece que a festa agora acabou e temos mesmo de começar a trabalhar se queremos viver como eles em vez de ir pedir emprestado ao banco...
Um abraço,
Frederico Torre
PS - Para bem ou para mal, trabalho num banco e no mercado de capitais. Sei por dentro o complicado que o sistema se tornou... E não porque queremos que assim seja, simplesmente porque ainda não arranjámos maneira de fazer o mesmo de uma maneira mais fácil. Mas estou certamente disposto a ouvir a opinião de todos aqueles que quiserem ajudar a conseguir isso... Só peço que se informem minimamente sobre como isto funciona antes!