De: Alexandre Burmester - "Acção Nevogilde e assim vai a Justiça"
Faz agora quase 4 anos e meio, e porque se iniciava a construção do edifício da esquina das ruas do Funchal e Marechal Saldanha, em conjunto com outros moradores intentámos uma Acção e uma Providência Cautelar para poder parar a construção e repor a legalidade. Um ano após e já com o edifício em acabamentos, foi proferida sentença sobre a Providência Cautelar. Concluiu o Tribunal que se houvesse erro não havia motivo para parar, porque poderia sempre ser reposta no futuro a sua legalidade. Na altura teci os meus comentários. Aguardávamos por isso o julgamento da Acção, que recebi esta semana no respectivo Acórdão e que segue no anexo para quem tiver curiosidade de ler.
O Acórdão é uma verdadeira “Pérola” da justiça Portuguesa. Não sei dizer se a decisão denota desconhecimento por parte do Juiz se outro motivo que me custa proferir, tal é a ignorância das afirmações que estão expressas no Acórdão. A título de exemplo, passo a fazer os seguintes comentários:
1. Relativamente ao entendimento sobre o conceito de Cércea, expressa o Acórdão à página 19 o seguinte entendimento. Após referir que “Cércea” de acordo com o ponto 12 do Artº 4º do Regulamento do PDM (Plano Director Municipal) se define como, “Dimensão vertical da construção medida a partir do ponto de cota médio até à linha superior do Beirado…” (Beirado = Beira do telhado, Fileira de telhas que formam a parte mais baixa do telhado.), conclui o seguinte, e passo a citar: “Ora tendo presente este dispositivo temos como certo que a medição da cércea dominante não se afere pelo beirado mas sim pelo cume do telhado, uma vez que o edifício de referência contínuo a sul ao que aqui está em causa tem um andar recuado”. Este entendimento é completamente desconcertante e ao qual nem sei o que responder. No mínimo isto deve ser uma atitude nova da Justiça em Portugal, mudar o sentido da Lei.
2. Quanto ao não cumprimento do RMEU (Regulamento Municipal de Edificação e Urbanização) onde é claramente expresso que apenas se pode fazer um andar recuado, tem o Acórdão a seguinte pérola de pensamento. “Quanto à violação do RMEU decorrente da solução aprovada para o prédio da contra-interessada contempla dois andares recuados, diga-se desde já que, conforme resulta da factualidade provada, ao contrário do que alegam os AA, o prédio da “contra-interessada” não tem dois andares recuados, mas antes, um 4º andar recuado constituído por 3 fogos de tipologia duplex” (pág. 20). Este entendimento é mais um atentado ao completo desconhecimento das regras de construção. Se isto tivesse qualquer sentido poder-se-iam construir no lugar dos pisos aprovados, o dobro ou o triplo bastando para tanto alegar serem os fogos duplex, triplex, etc.
3. Pelo facto do edifício não cumprir a altura de construção em relação ao afastamento das construções vizinhas, vem o Acórdão dizer que em cumprimento dessa determinação e passo a citar, “A contra-ordenada apresentou novos elementos em Maio de 2005, tendo procedido à retirada dos vãos de fachada voltada para a Rua do Funchal…” (pág. 23). O que é que tem a ver a retirada de vãos de fachada com o afastamento entre construções, o que determina a sua altura? Nada.
4. Vem ainda o Acórdão arranjar justificativa para o facto da construção não cumprir o estipulado na Lei sobre os 70% de permeabilidade do solo alegando que o grau de impermeabilização o solo cabe à “Livre apreciação” do projecto por parte das entidades, alegando razões que existem em casos de excepção mas esquecendo de dizer que esses apenas se aplicam na Reabilitação dos Centros Urbanos (pág.24). É mais uma demonstração da sua incompetência senão de imoralidade.
Particularmente acho que nestas condições tenho várias dúvidas sobre se deva ou não recorrer e continuar este processo. Há que equacionar o facto de que os Juízes sendo “parentes” da Câmara na categoria de funcionários públicos, tenderão a voltar a inventar argumentos para não nos dar razão, ou em alternativa pela incompetência até à data expressa, tirarem conclusões parecidas com as actuais.
A Acção teve sentido porque na altura através da Providência Cautelar, se funcionasse a Justiça, poderia parar uma obra ilegal e impedir a construção do prédio. Agora, 4 anos e meio após, com o prédio construído e com pessoas a morarem, é caso para perguntar quantos mais anos irá demorar esta “Justiça”, que se no final condenada a Câmara, qual irá ser o resultado? Hoje o prédio é uma realidade e sabemos por situações similares, caso do Shopping Center Cidade do Porto, que mesmo que a Justiça mandasse demolir, nada iria acontecer. No Shopping Center havendo ordem de demolição do Tribunal, procede-se hoje à legalização dos licenciamentos comerciais (?)
Há ainda a equacionar que esta Acção tem uma questão moral e cívica, porque evidencia a ilegalidade do processo administrativo feito pela Câmara Municipal do Porto, que deveria ter seguimento cumprindo assim o nosso dever de cidadãos. Esta situação só foi possível porque estiveram envolvidos no processo como projectistas técnicos da própria Câmara. Tenho dois amigos arquitectos que em tempos diferentes dirigiram-se à Câmara antes da aprovação deste edifício e propuseram outros projectos. A um foi rejeitada uma simples casa unifamiliar e ao outro um prédio com 1/3 da área deste.
Nestas situações e acrescentando ao exposto os custos envolvidos, volto a afirmar as minhas dúvidas sobre o procedimento de recorrer. Compete-me contudo, por ter liderado este processo, acompanhar ou a decisão da maioria dos intervenientes ou apenas daquele que pretenda recorrer. Aguardo respostas. Mas há coisas de que estou completamente certo. O prédio não está legal. Houve favor e corrupção. Também estou certo de que o Tribunal por muito que erre ninguém o condena, que a Câmara fará ouvidos de mercador e que no fim quem irá rir é o empreiteiro, o técnico e quanto ao resto, tudo ficará na mesma.
Custa é admitir que, se o país está assim, grande parte da culpa é nossa por nos conformarmos…
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Nota de TAF: Vale a pena descobrir e publicar mais tarde aqui o nome dos juízes que decidiram isto, pois as assinaturas no acórdão não são totalmente legíveis. Nem sei que diga...