De: Pulido Valente - "Adoptada por Biur"
A Ana Barradas, origem do correio que junto, é consultora internacional contratada pela União Europeia para formação e assistência técnica eleitoral e esteve na Guiné em trabalho. Aí teve conhecimento do que se passava em Biur e foi lá ver mas como não quis ir de mãos vazias levou uma bicicleta (ver texto do correio dela).
Acho que devemos ajudar as pessoas de Biur que são um exemplo de democracia em autogestão que pode ser interessante estudar para a acção das nossas freguesias. Para os de Biur meia dúzia de Euro são uma fortuna tal o estado em que se encontram. Por isso aquilo que conseguiram, praticamente sem ajudas e só com a sua perseverança e labuta demonstra que são merecedores da nossa ajuda para o que me disponho a receber contributos para a conta com o NIB 0018 0003 2184 7157 020 81, Totta Rua da Cerca, dos quais manterei os extractos de conta sempre à disposição de quem quiser saber como param as modas. Posso mesmo digitalizá-los e enviar a quem me mande o seu endereço. Irei enviando para lá à medida que os montantes o justifiquem. Se quiserem mandar directamente não percam tempo, p.f.
Eles vão precisar de estrada (para viaturas) para o hospital e estão já a tratar disso prevendo outras comodidades para depois. Por isso tudo o que conseguirmos não é demais. Vamos ajudar as pessoas de Biur e sabe-se lá o que poderemos fazer a seguir... Estou feliz por poder ajudar pessoas de merecimento, carenciadas, que desconhecia. Vamos mostrar que o mundo é, às vezes, bonito e que vale a pena ser solidário.
JPV
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From: Ana Barradas <anabarradas@netcabo.pt>
Subject: Adoptada por Biur
Gosto deste poema, acho-lhe graça:
Quiproquo
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Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabo
há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto
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Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno tão mau que não mata
há um antídoto para o suicídio de um poeta
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Senhor, Senhor, que digo eu?
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.
Arménio Vieira, poeta cabo-verdiano, Prémio Camões 2009
Mas não é por isso que escrevo, é para contar o meu encontro de terceiro grau com a gente de Biur, na região de Bissorã, a duas horas de Bissau para quem vai de viatura com tracção às quatro rodas, e a umas cinco horas para quem tem de abandonar a estrada asfaltada e caminhar quinze quilómetros por um sinuoso trilho de areia que visita todas as quatro tabancas [pequenas aldeias] que constituem a comunidade a que chamam Biur.
Quando chegámos estavam as mulheres e crianças à sombra de uma mangueira, algumas em cadeiras de bambu fabricadas localmente, e os homens agrupados debaixo da mangueira ao lado, quase todos sentados em cima de pedras. Mas nós, embora já cientes do que íamos encontrar, já íamos estupefactos com a visão de uma escola de alvenaria com três blocos em forma de U à entrada da tabanca, pintada de cor-de-rosa, tendo no centro do pátio um poço bem artilhado e equipado com uma bomba accionada por painel solar, a única forma de energia em muitas léguas em redor.
Uma e outro, a escola e o poço, são modernice insólita numa região em que não há rigorosamente mais nada que não seja a natureza quase intocada, umas culturas de arroz e cajueiros bem circunscritas, umas hortas escassas, as casas de palha das tabancas, uns cabritos e umas vacas africanas rústicas e quase anãs, e as cerca de quatro mil pessoas que ali vivem. E ainda mais insólitas porque essas construções sofisticadas fazem pendant com uma casinha que serve de casa-de-banho para os meninos da escola, inovação nunca vista, com dois telheiros de colmo que protegem blocos para construção, feitos ali mesmo para se começar em breve a construção da "casa dos professores" que servirá de aliciante para convencer os futuros docentes das 5ª e 6ª classes a irem viver para ali, e com uma casa com telhado de zinco que serve para armazenar a reserva de arroz a fornecer aos mais carenciados quando chegar Setembro, que é o mês mais duro e em certos anos é até mês de fome.
As pessoas, visivelmente pobres, olhavam-nos com curiosidade e expectativa, mas sérias e dignas. Quando saímos do camião e começámos a apertar a mão ao professor, às mulheres mais velhas, ao chefe da aldeia, ao homem que já tocava o tambor dizendo para as outras tabancas "os nossos já cá estão, agora faltam vocês, os que estão atrasados", o ambiente começou a aquecer. Uma mulher levantou-se e fez-nos um curto discurso em língua balanta, que percebemos que seria de boas-vindas mas que também continha outro recado: "Vocês vêm aqui para nos visitar, são muito bem-vindos, mas esqueceram-se de que muitas de nós, mulheres, quase não conseguimos trabalhar por estarmos doentes e sem assistência médica e nem um comprimido contra o paludismo nos trouxeram". Depois foram os discursos, sempre com tradução simultânea.
Quando nós, as visitas, acabámos de nos explicar (quem somos, por que viemos, o que queremos, etc.), foi a vez deles. Falou um homem, uma outra mulher, o chefe da aldeia, um jovem e depois quem quis: o solteiro que se queixou que as raparigas fugiam todas para Bissau porque ali não havia nada, o bêbado que foi um grande jogador de futebol, o jovem que reclama um campo da bola e televisão, o tipo que explica que os homens vêm das bolanhas (arrozais) muito cansados e preferiam ter as aulas de alfabetização à noite para poderem descansar à tarde mas não podem por não haver luz na escola, etc. O chefe é o ancião, eleito pelos moradores e amovível a qualquer momento se não satisfizer ou cometer falta grave. Foi o último a falar. Enumerou as carências e troçou da administração local que só lhes ofereceu um burro para transportarem as grávidas para o hospital a mais de 20 quilómetros.
Depois os três biurenses vindos de Bissau e nós (eu e um casal de portugueses que fazem formação de professores primários) entregámos à comunidade a bicicleta que permitirá ao rapaz designado pelo conselho dos velhos para transmitir recados aos outros velhos das tabancas vizinhas deslocar-se com mais rapidez e sem se cansar tanto. As crianças receberam doces e bolachas, as mulheres blocos e canetas para a alfabetização, vestidos para distribuir entre as tabancas, baldes para carregar a água e laranjadas, os homens vinho de caju para as cerimónias animistas e vinho português bag in the box, também novidade.
O que não estava no programa é que a dita senhora que nos censurava antes pela falta de medicamentos voltou a discursar para nos dizer que as mulheres precisavam de uma máquina de descasque de arroz e que eu, Ana, seria a partir de agora filha e madrinha de Biur e encarregada de satisfazer esta necessidade. Caiu-me o coração aos pés mas não pude recusar. Agora estou a preparar uma rifa a ser vendida pelos 3000 associados do Cabaz de Biur, a ONG constituída pelos que emigraram para Bissau e asseguram os melhoramentos da terra natal, para ver se reunimos pelo menos parte dos dois milhões de francos CFAs (três mil euros) que custa a tal máquina.
O Cabaz de Biur está em vias de obter da Comunidade de Santo Egídio na Itália o financiamento para asfaltar o caminho da estrada até Biur, conseguiu que dois médicos cubanos que trabalham em Bissau se desloquem de 15 em 15 dias a Biur para assistência sanitária e já concebeu e legalizou o projecto da construção do posto médico que servirá toda a zona. Quer mandar uma mulher da aldeia fazer um curso de matrona (parteira) e procura que o jovem que faz de professor e é modestamente pago pelos pais seja reconhecido como assalariado do Estado. Sonha com o dia em que poderão instituir o ensino secundário e está a organizar uma pequena biblioteca na escola. Como o mês de Setembro a aproximar-se, neste momento prepara-se a dessalinização das bolanhas invadidas por causa do aumento do nível da água do mar, processo que implica o reforço dos diques feitos à mão pela população, incluindo velhos, mulheres e crianças, e a montagem de tubos de escoamento de água segundo um sistema supervisionado por um engenheiro.
As comunidades balantas são muito democráticas e horizontais. Quase não há hierarquia, as decisões são tomadas em assembleias abertas em que todos podem falar, incluindo as mulheres, a terra é propriedade comum, o trabalho de cultivo é decidido e organizado colectivamente, não há régulo, soba ou outra autoridade e o jambacosse (feiticeiro animista) é uma espécie de médico tradicional. As pessoas mais esclarecidas querem acabar com o fanado (rito de iniciação para os homens) e em particular com o ritual de roubo de gado que faz parte deste uso, já acabaram com o fanado das meninas e foi abolida a circuncisão feminina. Combatem o alcoolismo e a violência doméstica penalizando em dinheiro quem a cometer. Na primeira volta destas eleições presidenciais que estão a decorrer, o índice de abstenção lá foi de 65 por cento, um dos mais altos do país, não por ignorância, mas por uma atitude assumida de "só vos damos votos quando vocês nos derem estrada, hospital, etc.", como deixaram bem claro aos apoiantes do candidato balanta Koumba Yala que os visitaram há dias. Aqui o voto étnico não funciona.
Não sei se algum de vós quer ajudar as mulheres de Biur a ter a sua máquina de descasque de arroz, mas é muito fácil, basta ir a um Western Union ou similar e transferir qualquer quantia, por pequena que seja, para Bissau. É preciso indicar o nome de quem envia e o nome de quem recebe, inventar uma senha e contra-senha e mandá-las por mail ao destinatário. A taxa cobrada é mínima. Preferencialmente os donativos para Biur devem ser remetidos para:
ONG Kabas de Biur, ao cuidado de Robana Nhathe
e o nº da transferência, senha e contra-senha enviados para
kabasdebiur2004@yahoo.com.br
Pasmada diante da plasticidade da vida e das voltas que o mundo dá, agora me despeço, saudosa de vós, na minha nova persona de
Ana di Biur
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