De: António Alves - "Cidade"
Quando aqui reagi a uma intervenção de Francisco Oliveira sobre o Corte Inglês estava longe de imaginar que a discussão em volta do tema se tornasse tão viva e participada. É bom sinal: significa que as pessoas debatem de forma animada e sem reservas as questões da cidade; é também sinal que a gestão feita pela autarquia, no âmbito deste processo, ainda incomoda; a uns mais que outros, obviamente.
O El Corte Inglés, queira-se ou não, é uma prestigiada marca comercial ao nível do melhor que existe em inúmeras capitais deste e do outro lado do Atlântico. É muito mais do que um mero outlet: chega mesmo a funcionar como uma verdadeira atracção turística, com as habituais implicações positivas e negativas dos fenómenos turísticos. Quantos não vão a Paris visitar os seus famosos Magasins, a Londres visitar o Harrods e a Nova Iorque o Macy's?
Mas a minha intenção não era discutir o El Corte Inglés em si mesmo, que é apenas um exemplo objectivo, e a meu ver claro, do tipo de política de criação de cidade que é adoptado pela nossa autarquia. E é essa a discussão que me interessa, o modelo de cidade que desejamos, e não as qualidades - boas e facilmente comprováveis - da cadeia comercial espanhola.
As cidades são, desde que surgiram na longínqua civilização suméria, concentrações de estruturas políticas, administrativas e económicas; assim como locais de grande concentração populacional. São sistemas sociais globais e complexos. Neles podem-se encontrar vários subsistemas (políticos, económicos, etc.) e todos os fenómenos típicos de sistemas mais amplos, como as sociedades nacionais e mesmo os sistemas internacionais. O Porto, nas suas variadas dimensões e complexidade, também é assim. Daí a variedade de opiniões acerca das políticas preconizadas em relação ao seu desenvolvimento (ou falta dele) e futuro adivinhado.
O Porto encontra-se numa encruzilhada. Como cabeça duma região que assentou o seu desenvolvimento numa base industrial de baixo valor tecnológico e baixo valor acrescentado, sofre, em conjunto com o seu hinterland, os efeitos nefastos da chegada à produção industrial de massa de países que até agora estavam dela arredados. Esses países são possuidores de vantagens competitivas imbatíveis. Como resultado instalou-se a crise económica, que trouxe consigo a crise social e a perda de influência política. Contudo, as situações de ameaça podem transformar-se em magníficas oportunidades. Oportunidades para reestruturar o sistema produtivo dando o salto para um patamar mais elevado: um paradigma de desenvolvimento assente em actividades de grande valor acrescentado e incorporação tecnológica de maior valor científico -- o que de facto já está em marcha, havendo numerosos exemplos disso, como a investigação na genética e na biotecnologia, levados a cabo por laboratórios e empresas sedeadas na região. Em paralelo é uma oportunidade para o Porto, visto no seu global, como grande área metropolitana, redefinir o seu papel como centro nevrálgico e coração demográfico duma imensa região que se estende até à Galiza.
Hoje, no tempo da sociedade em rede e das actividades que assentam na troca de informação, que circula dum ponto para o outro à velocidade da luz de modo imaterial, a localização duma empresa geradora de empregos e riqueza, sobretudo as do terciário mais qualificado -- finança, consultadoria e marketing, pesquisa, cultura e informação --, já não se decide pela elevada concentração de mão-de-obra pouco qualificada, como no tempo da indústria do tipo fordista, mas sim pela vizinhança com os locais de pesquisa tecnológica e decisão política, assim como pela vizinhança dos grandes nós das redes de transportes, sobretudo o aéreo, porque os trabalhadores destas novas indústrias necessitam de grande mobilidade. Decide-se também pela presença de centros de consumo de qualidade (entra aqui o Corte Inglês) e pela existência duma vida cultural dinâmica e cosmopolita, suficientemente atractiva para que as empresas possam seduzir e fixar os seus quadros e elites profissionais, cujos padrões de consumo e vida cultural são de elevada exigência. Sendo assim, as grandes áreas metropolitanas continuam a estar no cerne do desenvolvimento. Quem mais, se não elas, têm para oferecer todas estas condições?
O Porto Metropolitano, e em especial o seu município central, não tem ainda todas as valências que o torne num pólo de irresistivel atracção para o novo futuro, mas tem já muito: uma universidade de grande prestígio, empresas na senda da inovação, um porto de mar de grande qualidade, um aeroporto de nível internacional, uma rede de transportes públicos em franca melhoria de qualidade e eficiência, pólos de actividade cultural de excelência como Serralves, Teatro S. João e Casa da Música; tem também, não esqueçamos, um património construído de alto valor cultural com imenso potencial turístico que, espera-se, seja na sua maior parte recuperado com a maior brevidade possível. Precisa urgentemente de ganhar importância e capacidade de decisão política (regionalização/autonomia administrativa); precisa também de modernizar e qualificar a sua estrutura comercial e não descurar as infra-estruturas que favoreçam a comunicação e a troca de informação; deve amplificar, ainda mais, a sua oferta de cultura "alta" e criar infra-estruturas para se tornar no grande centro de oferta de cultura "popular" de massas do Noroeste Peninsular; precisa de melhorar as ligações físicas ao seu hinterland natural e a Espanha (as ligações ferroviárias ao Minho e à Galiza, ao Douro e a Salamanca); precisa, não esqueçamos também, de reforçar a sua coesão social e minorar os graves problemas de exclusão que o habitam. Mas este problema resolve-se sobretudo pelo crescimento económico e não com políticas assistencialistas que devem apenas acudir as situações de maior risco. E por fim, mas não por último, precisa duma liderança política (não confundir com qualquer espécie de messianismo) com vistas mais largas e maior ambição.
Eu acredito nas cidades dinâmicas, fervilhando de gente e actividade, com superfícies comerciais modernas e até, o que para muitos é uma heresia, zonas de construção em altura, porque esta é uma forma racional das empresas utilizarem o espaço disponível. Tudo isto pode e deve conviver com zonas exclusivamente residenciais de qualidade, pequeno comércio tradicional e toda a multiplicidade que uma cidade obrigatoriamente contém. Não acredito é que uma cidade possa ser uma imensa Nevogilde com belas ruas arborizadas e pássaros chilreantes, por muito que essa imagem nos seja agradável. É pura utopia.
António Alves