De: Jorge Ricardo Pinto - "Czar Rio"
"(...) espécie de directriz da urbanização portuense, autêntica espinha dorsal da organização do espaço ocidental da cidade: a Avenida da Boavista."
J.M. Pereira de Oliveira (1973) O Espaço Urbano do Porto.
O Porto, praticamente desde os seus primórdios, teve uma tendência natural para pender para Ocidente. Desde logo, ainda antes da muralha gótica (dita Fernandina), o aglomerado estendia-se em faixa em direcção à ocidental Miragaia. Depois, a construção, na década de 30 do século XIII, dos conventos de São Francisco e São Domingos é feita a poente do alto da Pena Ventosa onde se ergue a Sé, assim como o Morro da Vitória é incluído no perímetro da muralha do século XIV, praticamente restringindo a urbanização novamente no mesmo sentido.
As razões para essa inclinação derivam sobretudo de dois factores naturais: a topografia, mais suave que a do Oriente portuense; e a presença do mar, que toma particular destaque a partir do século XIX. Estes dois elementos acabarão por criar naturais desequilíbrios no valor dos solos, que por sua vez tenderão a criar padrões diferenciados no seu uso: o Ocidente ligado à residência das classes mais altas e aos espaços de lazer e de qualidade de vida; o Oriente com a presença forte da indústria, do caminho-de-ferro e das classes mais desfavorecidas.
Até ao século de Camilo e de Eça, o caminho para Ocidente em direcção à Foz era feito pelo chamado "caminho velho", actualmente ocupado, grosso modo, pela rua do Campo Alegre e Rua de Diogo Botelho até à Rua do Padre Luís Cabral, já na Foz Velha. O percurso junto ao rio, o "caminho novo", só passa a ser verdadeiramente opção a partir de XIX, através de um conjunto de alargamentos importantes que viriam a dar origem à Alameda Basílio Teles.
Ao mesmo tempo, a Norte das duas anteriores soluções, dignificando e diversificando o caminho em direcção ao mar, foi sendo aberta, ao longo de praticamente todo o século XIX, a Avenida da Boavista, aproveitando o alinhamento da rua homónima, que havia sido definida no Plano de Melhoramentos de 1784 de João de Almada.
A Avenida é, por isso, filha das concepções barrocas implementadas pelos Almadas no Porto, mas ganhou uma imagem vincadamente Oitocentista, quer porque foi efectivamente nesse período que foi sendo aberta (através de sucessivos acrescentos) quer porque leva ao extremo o conceito barroco de tender para o infinito e de se abrir para a Natureza, uma vez que termina no Atlântico. Ao longo do referido século, a Avenida acabou por incorporar muitos dos ensinamentos e práticas que lhe chegavam do exterior, assim como rasgou novas fronteiras que serviram de modelo para países vizinhos.
Neste capítulo, destaque-se a forma como a Avenida soube incorporar o pequeno trem a vapor que unia a Praça Carlos Alberto à Foz, destacando-se como o primeiro pequeno vapor a funcionar dentro de uma cidade ibérica, prova do vanguardismo portuense finisecular. Aliás, no que não era peça única, dado que se podem incluir no rol, o pioneirismo ibérico no transporte americano, na introdução do carro eléctrico, e, a nível nacional, no cinema, com Aurélio da Paz dos Reis, por exemplo.
Por sua vez, o esboço acima reproduzido é um marco da história do urbanismo. Pertence aos estudos que Arturo Soria y Mata, engenheiro e político espanhol, fez para a sua Ciudad Lineal. Esta Ciudad Lineal era a solução que ele havia encontrado para os males da suja e poluída cidade industrial. Consistia numa ventilada e verde via infinita, afastada dos centros urbanos, que seria marcada por um espaço central de circulação, quer de transporte ferroviário, quer de transporte viário, possibilitando a rápida deslocação da população ao longo da cidade em linha. Do seu plano, que pretendia alargado ao planeta (tal como mais tarde F.L. Wright desejará para a sua Broadacre, que tem algumas reminiscências da Ciudad Lineal), Soria y Mata verá apenas um pequeno troço aplicado na periferia de Madrid, entretanto completamente desvirtuado.
No entanto, se olharmos para o perfil transversal do projecto para a Ciudad Lineal, veremos que ele nos evoca de forma absolutamente clara a nossa Avenida da Boavista, sobretudo para quem ainda se recorda de antigos postais do princípio do século XX, com a sucessão de moradias e chalets nas laterais da via, na presença do eléctrico no centro do espaço de circulação, na rica sucessão arbórea e, acima de tudo, no contexto de absoluta ruralidade que eram os terrenos mais ocidentais da Avenida. Ora, o que surpreende aqui é que o projecto de Soria y Mata, repito, tido como marcante na história do urbanismo, é publicada em 1882, 4 anos depois de o pequeno vapor já circular na Avenida da Boavista e 8 anos após a circulação do carro americano puxada por mulas, no mesmo trajecto.
Terá sido a nossa Avenida da Boavista uma influência para Soria y Mata?
Independentemente da resposta a esta pergunta, o que me parece absolutamente lamentável é que, tendo a nossa estrutura urbana um elemento que pode ter sido inspirador para um momento marcante da história do urbanismo, tudo façamos para o destruir. Deixam-se demolir os velhos chalets, marca inextinguível de uma arquitectura de elite de final de XIX; termina-se com o eléctrico que, como vemos, está indelevelmente associado à génese da própria Avenida; e, para agravar ainda mais a situação, arrasam-se com as espécies arbóreas, num processo que vem de longe mas que atinge foros de verdadeiro insulto naquela pista de aterragem que lá fizeram, como tão bem ilustrou o Gabriel Silva, do Blasfémias.
Neste capítulo, como em tantos outros malogradamente (como no caso da Avenida dos Aliados), esta edilidade e este obtuso Presidente da Câmara demonstraram uma incompetência e uma insensibilidade assustadora, ao não respeitarem os legados urbanísticos do passado. Está na altura, como já se faz em tudo o que é país civilizado (e que, aliás, está base dos princípios do Porto - Património Mundial), de respeitar a herança urbanística de valor, tal como é suposto prezar a herança arquitectónica monumental.
Imaginem se agora o senhor Presidente da Câmara, para além de corridas de automóveis, também gostasse de escalada. Corríamos o risco de trocar os traços barrocos, as curvas e os contornos, as cornijas, os frontões e a balaustrada que tornam deliciosa a nossa Torre dos Clérigos, por um conjunto de saliências e pequenos degraus na sua fachada, para facilitar a subida ao topo do nosso ex-libris!
Esta brincadeira recente dos aviões, por muito internacional e fashion que seja, revela, mais uma vez, um lado demasiado motorizado da actual edilidade, mais preocupada com gasolinas, querosenes e ruído dos motores, do que com ambiente, tranquilidade e segurança para os seus cidadãos.
Por mim, estou farto. Se a voz de ordem é uma acção revolucionária ao bom estilo de 1917, contem comigo!
Jorge Ricardo Pinto
Também publicado no Comboio Azul