De: Pedro Leitão - "O snobismo dos mártires"
Nestes dias tem-me espantado como é que a população da cidade ainda não mostrou nenhum sinal de indignação contra o “assalto ao Rivoli”, protagonizado por cerca de quarenta auto-pronunciados mártires da causa da “anti-privatização” da cultura. Espanta-me, sinceramente, como pode deixar a cidade ter como advogados nesta matéria alguém que sempre se distanciou dos seus interesses e que sempre se manteve afastado da população, isolado num clube selectivo e restrito, que é, não obstante, financiado por fundos públicos. Apesar deste meu espanto, fica-me a certeza de que o braço de ferro pelo Rivoli mostrará claramente à sociedade, inevitavelmente do seu resultado final, o redondo falhanço da elite intelectual na gestão do seu monopólio cultural na cidade do Porto.
O sistema que esta tem até aqui advogado peca em todos os níveis de sustentabilidade; seja no financeiro (que reclama que seja incondicionalmente mantido com fundos públicos); seja no social (porque exclui a grande parte da população, a qual paga um sistema que não se destina a ela); seja no artístico (por não ter afirmação para cativar projectos de alta qualidade artística). O poder que lhe foi atribuído na Porto 2001 – que representa o seu apogeu de influência – seria suficiente para transformar por completo a vida cultural da cidade. Contudo, ao aplicar-lhe este sistema ao longo dos últimos cinco anos, reduziu a já irrelevante vida cultural do Porto para patamares vergonhosos face ao estatuto de uma capital de distrito e segunda cidade do país.
A culpa do estado da cultura é remetida para o Dr. Rui Rio, que quando chegou ao executivo da câmara desde logo decidiu acabar com a visão paternalista que os executivos anteriores tinham tido com esta minoria. A actual proposta de privatização do Rivoli representa o derradeiro golpe dessa política.
À margem das acções de defesa do modelo de gestão pública no teatro, os manifestantes têm lançado na imprensa, ainda que não o notem, tiradas de um snobismo repulsivo contra a população. Ao dizerem, por exemplo, que o que se pretende é sacrificar o “interesse público” em favor dos “La Férias” – que será, alegadamente, a única forma de conseguir encher as salas – estes intelectuais, que pretensiosamente falam em nome do público, estão a ofender seriamente a dignidade cultural da população, ao reduzir a sua sensibilidade artística a preconceitos de ordem folclórica, e a considerá-la incapaz de apreciar espectáculos de maior qualidade do que os referidos. Estas declarações são completamente descabidas de sentido pois é essa mesma “sensibilidade inferior” que manteve vivas algumas instituições como o Coliseu, o Museu de Serralves e a Casa da Música (estes dois últimos, atribuindo-lhes uma forte visibilidade internacional), só para referir alguns, a que a população em geral aderiu com forte entusiasmo. É também claro que estas instituições seguiram modelos de gestão diferentes da do Rivoli, apostando na diversidade de oferta, na formação e numa forte divulgação dos seus cartazes a todo o público em geral.
Na sua causa de snobismo mártir, esta minoria tem definindo a sua actuação política nestes últimos cinco anos como “uma política cultural (…) que proporcionou ao público portuense a oportunidade de estar a par da criação a nível internacional, ajudando a desenvolver uma vocação de cosmopolitismo do Porto” – Público 17/10.
Eu diria que se verificou tudo exactamente ao contrário. O cosmopolitismo do Porto é um processo que, tal como indica o conceito, implica uma participação alargada a toda a população e uma dinamização constante de divulgação cultural que abranja todos os públicos e todos os espaços próprios para a realização de eventos, não esquecendo a questão da escala, ou seja, uma optimização na ocupação dos espaços segundo a procura do público. E o Rivoli é demasiado importante para a cidade para ser ocupado só por quarenta pessoas.
Pedro A. Leitão