De: Judite Maia Moura - "Escarpa do Rio Douro V"
O sonho de vir a ter um percurso de sonho
E estamos chegados à pior das piores fases… Diríamos que inimaginável para quem não a conhece. É mesmo difícil decidir se devemos começar a descrever a realidade pela parte das casas se pela consequência das casas. Estamos a falar do Bairro de São Nicolau, que se estende ao longo da Rua Gomes Freire / Passeio das Fontainhas, a um nível mais baixo do que rua. O acesso à sua primeira parte é feito por uma ponte em ferro, que passa por cima da linha férrea actual – degraus, corredor, mais degraus e mais degraus e finalmente uma rampa.
No fim desta rampa estende-se um corredor, também ele em rampa, e começam as casas – de um lado do corredor é a linha férrea actual, bem encostada à rede de separação, e do outro lado as casas, difíceis de distinguir onde acaba uma e começa a outra. Curiosamente, no meio delas, surge uma com escritos de “vende-se”. Para quê e a quem? – foi a pergunta que nos surgiu. Mas talvez tenha uma razão de ser… Falámos com alguns dos moradores e uma das famílias ali residentes teve a gentileza de nos mostrar parte da casa, que tinham restaurado recentemente, e a casa é nada mais do que três casas: numa têm a sala e a cozinha; na seguinte têm dois quartos, um deles interior; e a terceira, que não vimos, é o quarto de banho, recentemente construído. Talvez a casa que se encontra à venda seja na esperança de que algum dos outros inquilinos queira fazer o mesmo… As casas têm uma senhoria, que os inquilinos mal conhecem, pois nunca lá vai, e pagam as rendas numa associação.
O Bairro de São Nicolau, já o tínhamos sabido por uma assistente social em 2010, não tem saneamento. E então? As pessoas fazem as suas necessidades fisiológicas em baldes e, depois, lançam o conteúdo pela Escarpa abaixo. Foi assim que nos foi contado em 2010 e foi assim que nos confirmaram os moradores agora. Aquele quarto de banho é uma excepção, mas também não nos foi escondido que os canos de esgotos despejam para a Escarpa, pois não têm outra solução. O correr destas casas onde estivemos continua, mas fomos aconselhados a não tentar aceder por ali, pois no fim do corredor bem estreito seguem-se escadas antigas, onde também já faltam alguns degraus, o que as torna perigosas. Não podemos esquecer que o desnível continua e as casas começam a estar cada vez mais em baixo em relação à rua. No fim deste correr de casas há certamente alguém que se dedica à agricultura, pois terminam num galinheiro seguido de hortinhas.
Depois desta zona cultivada existe ainda mais um correr de casas, inacreditavelmente degradadas, que além de não terem saneamento, como as anteriores, não têm também abastecimento de água. Aqui já estamos praticamente no Largo das Fontainhas, e o caminho de terra batida, entremeado com algumas escadas, termina nos lavadouros públicos das Fontainhas, junto à Ponte do Infante, estes ainda em actividade. Aliás é nestes lavadouros que os moradores das últimas casas se vão abastecer de água, embora exista lá um aviso de “água imprópria para consumo”. E o lixo? Em toda esta extensão, de umas centenas de metros, escada acima e escada abaixo, calor escaldante no Verão e lama no Inverno, existe um contentor de lixo em cada extremo do Passeio das Fontainhas, a uma boa distância de uns duzentos metros um do outro… Qual é então a solução? Atirá-lo Escarpa abaixo, tal como se lançam os dejectos, por ordem de quem manda e poderia fazer alguma coisa! Algum de nós será capaz de se colocar no lugar destes moradores? Eles pagam um aluguer para ali viverem!
Feita a descrição do Bairro de São Nicolau no nível da sua vivência, vamos então, novamente, ao nosso Ramal da Alfândega, para vermos a realidade lá em baixo… Se à outra lixeira chamávamos a “lixeira grande”, a esta não podemos chamar nada mais nada menos do que a “fossa”. É só uma questão de verem as fotografias. Aqui, na linha férrea, tínhamos parado à entrada do segundo túnel e o inacreditável aguarda-nos à saída desse túnel.
Já Confúcio dizia que “O homem de bem exige tudo de si próprio; o homem medíocre exige tudo dos outros.” Assim, Voluntários da AMO Portugal quiseram exigir de si em primeiro lugar e ir ao local e ver com seus próprios olhos, com seus próprios sentidos e sentimentos, aquela triste realidade, um misto de lixo e de esgotos e de tudo quanto se possa imaginar e não imaginar. Passaram lá uma manhã de Maio e agora têm a possibilidade e o direito de poder contar toda a verdade sobre o que encontraram. E estes esgotos, estas escorrências bem visíveis pela Escarpa abaixo, onde vão parar? O que estará mais perto delas? O rio, claro! É só ir à Marginal e vê-las todas lá, com canos e sem canos, fazendo o regalo das tainhas que muitos vão, depois, pescar e comer… Neste local existe uma porta com acesso a umas escadas que vêm aceder ao Bairro de São Nicolau. Dependendo das condições atmosféricas, e provavelmente não só, essa passagem ora está aberta ora está vedada por uma rede. Nesta altura a porta está vedada com a rede e líquido cai, tipo cascata, pelas escadas abaixo, atravessa a linha férrea e continua a cair para a Marginal.
Avançando um pouco mais no percurso, uns cento e cinquenta metros talvez, mesmo por baixo da Ponte do Infante, chegámos à boca do último túnel do percurso, um pouco assustador, cheio de escorrências nas suas paredes e que, pelo que nos disseram na Câmara do Porto, vai terminar na Alfândega, justificando, assim, o seu nome de Ramal da Alfândega. Mas, para levar também até ao final os maus tratos da Escarpa, ali mesmo ao lado do túnel tem uma outra boca, mais pequena, por onde escorre líquido, muito líquido, vindo de cima e que desaparece pelo chão, sabe-se lá para onde… Ou melhor, tendo em conta tudo o que se viu antes de chegarmos aqui, não restarão dúvidas de que será mais um a ir descarregar ao Rio Douro…
... Publicado também no site da AMO Portugal. Ver álbum de fotografias aqui.