De: Cristina Santos - "Outros motivos"
Tem 31 anos, vive a 2 minutos do emprego e a 10 minutos da escola do educando, faz o trajecto ao volante de um boeing, para poupar 7 minutos. Compra as coca light, o pão, a fruta e o resto da mercadoria no Pingo Doce, só vai ao Continente através da Internet. Almoça diariamente num restaurante acanhado que repete a ementa de 15 em 15 dias, falha ocasionalmente às quintas porque há tripas e não gosta do cheiro. Tem uma estação de metro pertinho de casa, mas ainda não conseguiu decifrar as linhas e as 2 vezes que andou foi grátis, por não conseguir introduzir o andante nalguma cavidade que pudesse existir naquelas máquinas. Questiona-se sobre a existência de um autocarro com o numero 322, culpando os STCP pelo trânsito condicionado, com 322 autocarros como se pode circular?!
Evita jardins acanhados porque acha que é perder tempo ir ao jardim e não apanhar ar fresco, raramente passeia na cidade e ao fim de semana parte para a aldeia mais próxima, sendo obrigado a fazer mais de 100 km até encontrar uma zona verdadeiramente rural de natureza conservada.
Esforça-se por andar a pé na cidade, esgota as forças em poucos metros de calçada e corre espavorido para dentro do carro, para recuperar o folgo através do ar condicionado. Faz trajectos mais longos que o necessário para se desviar do encontro com as pessoas que estão sempre paradas no mesmo sítio, dão-lhe a estranha impressão que os dias não passam. Fica triste só de olhar para as praças e não conseguir valorizar essa dádiva pública.
Fica melancólico com as recordações positivas dos tempos de estudante, quando o Porto era positivo e passageiro, todos os caminhos eram feitos a pé, os edifícios eram todos carismáticos, os «habituas» das praças não atemorizavam a juventude, o desporto era bom em qualquer sítio, as águas furtadas serviam de dormitório e sede de festas, as caleiras furadas serviam de partidas para os amigos.
Decide 3 vezes por semana que tem que fazer exercício físico, comer bem, descansar e andar a pé, de outra forma não consegue transmitir ou receber energias positivas da Cidade, a única solução que encontra é mudar-se para 15 km à frente.
Culpa-se por não estar a conseguir resistir ao chamamento da periferia, não quer aceitar que o Porto seja agora uma cidade de passagem, adequada aos que chegam e precisam de se instalar provisoriamente, não aceita que a cidade não tenha evoluído ao ritmo das suas necessidades. Como sente que tem que partir para melhorar, pensa que a Cidade morrerá, mas ignora que há sempre gente nova a chegar e gente habitual que se passeia com sacos de fruta verdejante pelos mais emblemáticos cafés do Porto.
Resigna-se geralmente à noite em frente ao computador, e por norma tenta incentivar os amigos com anúncios solenes do tipo:
– Não sei se sou deprimido, se a cidade me deprime, não sei se fico, não sei se vou, sei que por enquanto estou no Porto por opção, a opção de me levantar 20 minutos antes de pegar ao serviço.
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Cristina Santos