De: Hélder Sousa - "Sobre a vida na Baixa do Porto"

Submetido por taf em Quinta, 2006-09-14 16:32

É sabido que ao longo dos últimos dez anos a cidade sofreu algumas das suas mais importantes transformações. Os hábitos de relacionamento da população com a cidade alteraram-se mais neste período de tempo – com adaptações sucessivas a obras, eventos festivos, mudanças de políticas e de estratégias para a cidade – do que em várias décadas anteriores.

Dizem-me que é também nestes dez anos que mais se evidenciou a desertificação do centro da cidade.

Para começar por aqui, relembro que há dez anos atrás – por alturas da classificação da cidade como Património Mundial pela UNESCO – já se falava em reabilitação da Baixa, em esforços políticos para recuperar os habitantes e a centralidade.

O que aconteceu foi que em dez anos construíram-se vários centros comerciais nas periferias, aglomerados imensos de T2 e T3 a preços simpáticos, os majores ganharam sucessivas eleições e a cidade do Porto em vez de ganhar uma nova centralidade ficou cada vez mais periférica, cada vez mais abandonada e ainda mais degradada, ao contrário do que se quer fazer acreditar nas reportagens televisivas.

O Porto é, em 2006, uma cidade ainda mais triste – apesar de termos mais dias de sol – mais abandonada, mais feia e infinitamente mais suja e desinteressante!

O que aconteceu de errado? Tudo ou quase tudo. Desde a ineficácia dos projectos de requalificação urbana e da rede de transportes públicos a políticas culturais de bradar aos céus em qualquer cidade desenvolvida, passando obsessões mais ou menos monstruosas e caseiras com despesas públicas, não houve nada que não acontecesse no Porto.

Porque é que alguém quer viver no centro do Porto?
Sendo realista: por nada! Não há nenhuma razão objectiva para se viver no centro da cidade!
Quem gosta de andar a pé, para além da difícil geografia da cidade, tem que suportar o pó das obras, a poluição e os excrementos de animais; espaços verdes: tão cinzentos, tão cinzentos – com excepção do cemitério Prado Repouso; quem tem carro, não tem onde o estacionar; fazer compras: ou centros comerciais ou então Boavista, porque só de olhar para as montras das tão clássicas lojas da baixa1 percebe-se bem quanto mudou a moda nos últimos sessenta anos; cafés: lugares deprimentes onde os copos de água têm pequenas riscas negras acumuladas ao longo de décadas, e tudo se faz acompanhar da torradinha em pão de forma; confeitarias onde néons horrendos iluminam um nada imaginativo conjunto de pastéis; restaurantes: não me recordo de nenhum que ultrapasse o filete de pescada, o croquete de entrada e a boa francesinha; cinemas: ao ar livre e só no verão, nas pré-históricas sessões do Inatel, e mais recentemente as pontuais sessões do Passos Manuel; cultura: Casa da Música e Serralves, que por acaso ficam na Boavista e, salvé!, o persistente TNSJ com muito má vizinhança; depois lá vamos tendo umas heróicas livrarias onde ainda é possível viver civilizadamente… tudo o resto são animações, malabarismos e artistas de rua que combatem a tristeza da população geriátrica do centro da cidade do Porto.
Por tudo isto: só vive na Baixa quem não tem mesmo onde viver! E esta é a triste verdade que é preciso enfrentar antes de qualquer outra coisa.

O que é que as outras cidades têm que o Porto não tem?
Este pode ser um bom princípio para começar a combater o problema. Não se trata de copiar – apesar de eu ser adepto do bom e verdadeiro copianço como forma de aprendizagem2 - mas de ver como se faz e fazer igual com o que temos à mão. E se não queremos ir ao tão distante e sempre referencial estrangeiro, podemos ir a Lisboa para ver como se faz sem esperar também grandes coisas do poder político. Ou então, e pasmemo-nos com o ridículo da situação, podemos ir a Matosinhos e tiremos notas sobre como uma cidade periférica, e fundamentalmente pesqueira, se tornou nos últimos vinte anos numa das cidades com mais qualidade de vida para oferecer aos seus habitantes.
Uma cidade viva tem que ter uma população jovem ou, pelo menos, rejuvenescida. Para isso é preciso seduzir as pessoas para se instalarem (ou reinstalarem) no centro da cidade. Essa sedução faz-se através de espaços de ocupação de tempos de lazer e ofertas de trabalho, sendo que é mais fácil viver na cidade e trabalhar fora do que o contrário.
Ainda o exemplo de Matosinhos: a concentração de jovens profissionais liberais e de jovens casais, com formação média e superior, naquela cidade é absolutamente impressionante. Grande parte deles desenvolveu naquela cidade os seus próprios empregos, criando mais emprego e contribuindo para o crescimento económico da cidade.

Todas as cidades europeias passaram, mais ou menos na mesma altura, por um processo de desertificação. Em quase todas usaram-se dois argumentos para contrariar essa tendência: (1) incentivo à instalação de jovens profissionais nos centros das cidades com os seus negócios e iniciativas de investimento, dando especial apoio a projectos comerciais inovadores; (2) incentivo às actividades científicas, culturais e artísticas em zonas ‘abandonadas’.

Podemos ver como em Londres as actividades artísticas, com tudo o que desenvolvem, transformaram bairros industriais em bairros ‘artísticos’ e depois em zonas cobiçadas em termos imobiliários; em Nova Iorque isto já aconteceu em dois ou três bairros; em Paris, em Barcelona, em Lisboa está a acontecer.

De resto é fácil perceber que a única zona do centro do Porto em que existe realmente vida é a zona de Cedofeita/Miguel Bombarda, e isso sem programas municipais de reabilitação – pelo contrário! – mas graças apenas (ou ‘à custa’3) ao investimento de artistas, galeristas e jovens profissionais que aí se instalaram para viver e trabalhar. E o que temos agora: restaurantes, lojas de comércio tradicional (mas sem as tradicionais peças de fazenda cinzenta), mercearias, hotéis, galerias de arte, livrarias…

A equação parece simples ao comum dos mortais: jovens profissionais ou jovens empresas instalam-se nos centros das cidades, criam emprego, criam procura de espaços de lazer (restaurantes, lojas…), criam-se novos negócios, criam-se novos empregos, criam-se mais necessidades e assim se fazem as cidades; incentivam-se as actividades artísticas nos centros das cidades, criam-se postos de trabalho (a arte cria emprego, sabem?), cria-se procura de outros serviços, a arte traz gente (público, consumidores) que não consome só arte, também janta, também compra outras coisas e movimento outros sectores de negócio – para não falar da arte e cultura como primeiro factor de atracção turística. Ou seja, o público da arte cria outras necessidades, a procura leva à oferta e retomamos o ciclo de crescimento.
Tudo isto se baseia num sentimento básico do ser humano: o desejo. Antes da necessidade está o desejo de habitar uma cidade. O desejo é em tudo muito mais importante do que qualquer outro estímulo que se possa dar às pessoas. É pois necessário criar desejo nas pessoas de habitar o centro da cidade.
Parece simples.

O que não me parece simples é querer começar a cidade pelo alojamento de luxo, sem que nada faça prever que alguém queira esse alojamento para viver; ou querer apostar às cegas em como as pessoas vão ocupar casas novas ou velhas numa cidade deserta, onde os pombos competem com as gaivotas pelo rato morto na esquina.
O que não me parece simples é querer construir uma cidade começando por matar nela tudo o que de vivo ela ainda tem (tinha): companhias de teatro, cinemas e teatros, galerias de arte, cafés, jovens, espaços verdes…
O que não me parece simples é construir uma cidade (ou reconstruir) em parceria com instituições que estão já de si mortas e embalsamadas.
O que não me parece simples é construir um centro de uma cidade dentro de gabinetes virados a sul e longe da verdadeira cidade.
O que não me parece simples é querer construir uma cidade sem viver nela e sem ter coragem de caminhar do Campo 24 de Agosto à Rua de Cedofeita para perceber de que pessoas é feita essa cidade.

Sobre o desejo
Falei da necessidade de criar desejo de viver no centro da cidade. Isto significa seduzir as pessoas. Tornar o facto de viver no centro da cidade senão uma ‘moda’ pelo menos um factor importante na vida das pessoas, pelo que significa, pelo que pode significar, pelo que as pessoas querem que signifique.
Estar no centro da cidade é estar no centro de tudo e é onde tudo acontece. As pessoas querem viver onde tudo acontece. Este é um factor fundamental quando decidimos onde nos queremos instalar, onde queremos viver e educar os nossos filhos.
A cidade tem pois que ser transformada num local com acontecimentos. Com concertos, espectáculos, cinemas, exposições, animação nocturna, bons e variados restaurantes, cafés e bares cheios de gente. Jardins para passear, dormir, comer. Ruas e bairros onde as pessoas desejem viver. É fundamental vender a importância de viver na Baixa com argumentos irrefutáveis.
O que precisamos é de uma cidade sensual4 e com um grande poder de atracção.

O público-alvo desta campanha de sedução não é uma minoria com grande poder de compra que quer ter apartamentos de luxo na Avenida dos Aliados (essas pessoas já têm as suas casas), não são os casais de idosos que já cá viveram e saíram porque não tinham condições – esses sabem muito bem como foi viver no centro da cidade. O público desta campanha capaz de melhor responder ao desafio são os jovens em início de carreira, cidadãos de rendimentos médios com formação superior e exigentes no que diz respeito aos hábitos de vida extra-profissionais. Jovens consumidores de lazer e de cultura, empreendedores, informados e habituados a práticas cosmopolitas. São também os clientes das companhias de aviação low cost e das youth hostels espalhadas pela Europa e pelo Mundo.

Convém não esquecer que as únicas instituições públicas de ensino superior ainda no centro da cidade são a Faculdade de Belas Artes, a Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo e o Instituto de Biomédicas Abel Salazar. Não será por isso coincidência que sejam os jovens formados nestas escolas quem mais deseja viver e trabalhar no centro da cidade!

O tamanho reduzido deste último parágrafo, não faz justiça à sua importância. Como temo que passe despercebido no meio do texto, chamo novamente a atenção para esta tão óbvia, tão simples e tão verdadeira conclusão. No meu ponto de vista, é claro.

Questões-interrogações práticas
1. A aposta no comércio tradicional passa por investimento em novos sectores de negócio, com novos produtos, com inovação e criatividade. O tradicional do comércio deve ser a relação que se cria com as pessoas/clientes e não o tradicional artigo comercializado que ninguém procura e que leva as lojas a fechar portas por falta de clientes. As que não fecham são mantidas à custa de rendas baixas e de um negócio feito com muita paciência à espera da reforma do ilustre comerciante.

2. Não faz sentido construir habitações em zonas periféricas da cidade ou em zonas onde até agora existia apenas terreno baldio, uma vez que já existem casas mais do que suficientes para quem procura casa. O cidadão comum prefere, obviamente, investir numa casa pronta a habitar e viver mais longe do centro – muitas vezes, em áreas maiores por menor preço – mas isto só acontece porque a Câmara (as Câmaras) permite a construção, logo a entrada no mercado, de cada vez mais casas. Mas isto, politicamente, deve custar muito e é sempre mais fácil fechar um teatro do que impedir a construção de um condomínio no Carvalhido.

Curiosidade
Transcrevo algumas frases que encontrei numa publicação da Área Metropolitana do Porto5, chamado Quadro de Referência Estratégica Nacional 2007-2013:

«O robustecimento da Marca Porto e do Destino Porto, como motores da AMP e sua envolvente, deverão constituir outra aposta clara na promoção da região para o exterior. (…) A AMP tem condições suficientes para atrair muitos mais turistas do que os actuais, através de uma boa promoção dos seus aspectos culturais, científicos, históricos e de lazer.»

E mais à frente:

«A intensificação do marketing e reforço das potencialidades e da importância da marca Porto. Cidade de Ciência, bem como a afirmação do Porto como um centro cultural na Europa, devem ser desafios a aceitar e a vencer pela AMP.»

Isto ou é engano dos editores da publicação ou é aplicado a todas as cidades da AMP, menos ao Porto.

Medidas concretas
Para terminar este longo e talvez inútil texto, refiro apenas algumas medidas que me parecem fundamentais para uma cidade que ser quer europeia, civilizada, multicultural, informada, evoluída e por aí fora:

  • 1- Incentivar a fixação de jovens no centro da cidade: créditos bonificados, rendas financiadas (ou subsidiadas se a palavra não assustar);
  • 2- Promover a criação de micro-empresas e negócios alternativos no centro da cidade: usar parte dos edifícios que estão ou vão ser reconstruídos para instalar ninhos de empresas, ateliers para jovens criadores, cafés, lojas, bares, restaurantes – com condições financeiras vantajosas para jovens empreendedores/investidores;
  • 3- Privilegiar os negócios e as empresas dos sectores criativo e científico;
  • 4- Ignorar os apelos das moradias de luxo e de espaços de estacionamento para carros de alta cilindrada (esses virão sempre naturalmente);
  • 5- Investir nas estruturas de criação artística (dança, teatro, cinema, artes plásticas, música) que pretendam exercer a sua actividade no centro da cidade, sem que para isso não lhes seja exigido mais nada para além de existir e trabalhar: criar espaços de ensaios/trabalho para estas pessoas é fundamental;
  • 6- Promover a instalação de esplanadas nos muitos espaços cinzentos ao ar livre que agora estão espalhados pela cidade: já que não possível cobri-los de relva novamente;
  • 7- Se não for pedir muito, participar, com parceiros privados, na recuperação de um ou outro cinema abandonado;
  • 8- Usar parte do orçamento existente para reabilitar edifícios nas acções anteriormente referidas: a reabilitação acontecerá naturalmente e através das leis do mercado;
  • 9- Mudar urgentemente de políticas autárquicas e, de preferência, de Presidente da Câmara e respectiva máquina de propaganda.

Peço desculpa se me alonguei demasiado. Entusiasmei-me.

Hélder Sousa

1- Provavelmente associadas dessa tão importante associação de comerciantes do burgo.

2- É a copiar que se aprende os nomes dos rios, que se aprende a namorar, que se aprende a aprender.

3- Referência irónica à expressão que o presidente da câmara gosta de usar ‘à custa do orçamento público’.

4- Ou seja, uma cidade não à imagem do Presidente da Câmara, mas ao contrário.

5- Inútil mencionar o nome do presidente da Área Metropolitana do Porto.