De: Jorge Coelho - "A Ribeira"
Há poucos anos, a Ribeira era marginal; não porque se tratasse de local mal-afamado situado à beira-rio mas porque, de algum modo, a generalidade da população do Porto ignorava esta zona típica da cidade como possível cenário de lazer, encontro ou convívio, com o Rio Douro a oferecer-se ao desfrute e descanso dos olhos e do espírito. A Ribeira nunca foi uma zona perigosa. Em todo o caso, a Ribeira não fazia parte, por exemplo, do «passeio dos tristes» dos portuenses, mais «vocacionados» para o sobe-desce de Santa Catarina, 31 de Janeiro ou Clérigos, ruas de comércio, de montras enfeitadas de tentações utilitárias ou de ostentação, que os mirones podiam ver, e já era alguma coisa, para sonhos que a escassez das bolsas nunca permitiria se transformassem em realidade.
A Ribeira era pouco mais do que «uma coisa lá para baixo»,um sítio onde viviam pobres e trabalhadores do rio, sem interesse para o turismo. A Ribeira vivia a sua vida, cumpria a sua história, diariamente protagonizada pelos seus habitantes, gente ligada à faina fluvial, vendedeiras de mercado, crianças esfarrapadas ou semi-nuas, nuas às vezes, quando o tempo chamava ao banho no rio e aos saltos do tabuleiro inferior da ponte. Meia dúzia de tasquinhas, um ou outro restaurante mais «limpinho», a tirar partido do tipicismo da zona: na Ribeira não havia mais nada que justificasse a permanência, sobretudo à noite.
Hoje, a Ribeira não é o que era, entregue ao turismo. Está tudo disperso, foram as pessoas para os bairros, o do Aleixo, o do Regado, o da Pasteleira, etc.. Bem sei que no meu tempo de catraio havia muita miséria, vivia tudo a monte. Havia os paquetes... Os paquetes eram casas com andares todos subdivididos e cheios de gente, eram autênticas ilhas ao alto, umas verdadeiras colmeias onde se vivia aos magotes, em promiscuidade e sem condições nenhumas, a água ia-se buscar ao corredor, a uma torneira. Quando havia água. Um dos paquetes, a que chamávamos da Rosa Padeira, ficava na Rua da Fonte Taurina. Fominha não faltava. A fome fazia parte da nossa vida, meus pais trabalhavam muito e ganhavam pouco, punham-se objectos no prego. Era normal estrear-se roupa comprada a prestações.
A vida melhorou, existem melhores condições de habitação, vive-se melhor, mas temos a outra face da moeda, perderam-se as relações de vizinhança, perderam-se valores de humanidade. A Ribeira tem turismo, com restaurantes de luxo, está retocada, mas ferida de agressão vil pelo«senhor dinheiro», que não respeita valores, que retira os seus poucos moradores para os bairros sociais. Pergunto o que será feito daqui a poucos anos da identidade genuína deste povo que nasceu e viveu e quer acabar os seus dias na Ribeira e em S. Nicolau.