De: David Afonso - "O postiço e o real"
Esta pequena notícia passou despercebida, o que é pena porque se trata de um claro sinal dos tempos. A Polícia Municipal do Porto terá impedido a realização de um concerto numa sala de espectáculo devidamente licenciada para esse efeito. Não estamos a falar de qualquer sala de espectáculos, é apenas o decano dos teatros portuenses, o Teatro Sá da Bandeira. O problema é que nem a provecta idade desta instituição a protegeu dos avanços de um recém-chegado, o Hotel Teatro, que se terá sentido incomodado com o ruído do negócio vizinho.
No site do hotel pode ler-se que «O Hotel Teatro nasce no mesmo lugar onde, em 1859, se inaugurava o Teatro Baquet. 151 anos depois ergue-se, no mesmo local, um hotel que recria esse ambiente ímpar, requintado e boémio do Teatro. As portas saúdam todos os que visitam com o poema de grande poeta romântico portuense – Almeida Garret. / A recepção representa uma bilheteira, onde cada hóspede adquire um bilhete para aceder ao seu quarto». O hotel não só se apropria de uma memória que não lhe diz respeito, como também não parece ser capaz de a respeitar, efabulando uma imagem em torno conceito «giro» de teatro, oferecendo um simulacro, uma coisa postiça aos seus clientes. Entretanto, o Teatro verdadeiro, o seu vizinho, vê-se acossado e impedido de desenvolver a actividade para a qual se encontra legalmente credenciado porque isso incomoda os hóspedes do teatro faz-de-conta.
Quando o postiço toma o lugar do real, é ultrapassada a linha imaginária que delimita e contém a identidade das comunidades: já não somos o que somos, somos aquilo que os outros julgam que nós somos. Por meia dúzia de patacas fazemos números de circo como teatralizar um hotel ou hotelificar um cinema (como o caso Cinema Águia), (re)calcando, para esse fim, o mais possível a nossa própria identidade. Disneyficamo-nos para inglês ver («Como optámos por uma decoração tão neoclássica, há pessoas que acham que recuperamos o palácio», como dizia Pilar Monzon a propósito de outro hotel recentemente inaugurado no Porto, o Palácio das Cardosas) e com isso perdemos de vista a evidência de que uma cidade não pode viver apenas do turismo e que até mesmo os turistas precisam de algo mais do que hotéis e um cenário para se sentirem atraídos por uma cidade. Não será, com certeza, por causa dos quartos de hotel que um turista visita uma cidade, por mais alegóricos e folclóricos que estes sejam. As cidades postiças, que se vestem para seduzir, não convencem o turista que, por definição, aspira à autenticidade do lugar. A autenticidade não se define e nem se aponta ao visitante, porque este terá a competência para a pressentir e apreciar. A autenticidade resulta da vida quotidiana das pessoas e da qualidade das suas acções que têm lugar (e fazem o lugar) no espaço urbano de uma forma espontânea, não dirigida para o consumo do olhar do estrangeiro. Tenho muita dificuldade em perceber que mais-valia podem trazer estas manobras de branding urbano replicadas um pouco por todo o mundo. Autenticidade implica autoctonecidade, isto é, o direito de conduzir a sua vida pessoal e social segundo os padrões culturais específicos e únicos de um lugar.
O trabalho, a cultura e as pessoas constituem a paisagem humana das cidades. O Porto foi e, apesar de tudo, ainda é uma cidade de cultura. A música, o teatro e o cinema fazem parte do nosso ADN e apenas precisamos que nos deixem continuar assim, prescindindo de imitações e, sobretudo, não nos podemos permitir que o simulacro se sobreponha ao real. Termino lembrando que o mesmo Teatro Baquet, cujo ambiente o Hotel Teatro diz recriar, ficou tristemente célebre pelo horrível incêndio de 20 de Março de 1888 no qual morreram carbonizadas mais de uma centena de pessoas. Em honra das vítimas erigiu-se, no cemitério de Agramonte, um monumento fúnebre com os restos de ferro retorcido e demais materiais. Mas esta parte da história não tem lugar na disneylândia.