De: TAF - "O copo de leite"
Há já quase 40 anos, era eu miúdo, fui com os meus pais lanchar à Pousada de Óbidos. Nunca mais me esqueci. Fiquei impressionado com o requinte do local (até porque naquela idade pouco conhecia do mundo). Uma decoração sóbria mas ao mesmo tempo solene, muito elegante. Um atendimento irrepreensível de delicadeza e competência. E, principalmente, aquilo que na altura me deixou verdadeiramente encantado: o leite que pedi veio servido num copo de pé alto. :-)
Desde esse tempo sempre entendi que as pousadas tinham um papel especial. Eram de algum modo uma montra da qualidade que Portugal sabia ter, do bom gosto distintivamente nacional que conseguia oferecer. Eram uma referência que nos orgulhava, marcando ao mesmo tempo um nível de exigência a que nos devíamos obrigar. Pelo menos para mim, eram um símbolo do país, algo intrinsecamente nosso.
A intervenção do Estado na economia deve ser muito limitada, com raríssimas excepções só por motivos muito especiais: esta é uma delas. Daí que tenha ficado preocupado quando, há alguns anos, foi assinado um contrato de concessão das pousadas com o Grupo Pestana. Por muito competente que este grupo hoteleiro pudesse eventualmente ser, os objectivos nunca seriam os mesmos de uma gestão estatal. Parece-me evidente que não faz sentido subsidiar as pousadas, que tem de haver equilíbrio orçamental e racionalidade económica. Mas o Estado também pode ter boa gestão (sejamos exigentes!) na missão de "representação nacional" que as pousadas devem ter.
Ontem resolvi visitar novamente a Pousada de Óbidos e, não resisti, pedir novamente um copo de leite. Os meus receios eram fundados. Não foi o facto de o copo ser vulgaríssimo, foi o de ser quase tudo mais "normal", de perder o carácter especial que valorizava uma pousada, tantas delas a funcionar em edifícios que são monumento nacional. Apesar do atendimento ter sido muito bom (o problema não é a qualificação dos trabalhadores), há claramente um défice de gestão. As instalações estão gastas (o que só por si nem seria grave) e, principalmente, um pouco desleixadas. É o fecho que está solto, a mancha na parede, a falta do prato e do guardanapo a acompanhar o copo. É o enorme painel de propaganda ao Grupo Pestana completamente fora de propósito, o móvel a servir de suporte de venda de livros, a entrada pouco cuidada.
Vem isto a propósito de quê? Tendo eu uma perspectiva bastante liberal quanto à Economia, mantenho a convicção de que há alguns serviços que devem continuar a ser assegurados directamente pela Administração Pública. Desde que não se faça concorrência desleal aos privados nem se replique actividades que o mercado já assegura de forma adequada, o interesse público pode recomendar que sejam estruturas públicas a garanti-los. Porque, repito, os objectivos não são os mesmos dos privados - o "óptimo" na gestão para um privado não é o mesmo "óptimo" da gestão pública. Esta onda, presente muito intensamente no Porto, de privatizar serviços ou património públicos, só com o pretexto de que "assim é que vão ser bem geridos", não faz sentido. Há privatizações que serão sensatas, mas nunca justificadas por esta razão.