De: David Afonso - "8 apontamentos sobre a Baixa"

Submetido por taf em Quinta, 2006-08-03 11:42

[Nota: estes apontamentos vêm a propósito de duas notícias sobre a baixa: uma no Público (Local Porto) de outra n'O Primeiro de Janeiro. Ambas datadas de 31 de Julho. Creio eu]

1. A SRU está a ponderar a hipótese de demolir os pequenos quarteirões na Trindade, junto do Palácio dos Correios. As justificações avançadas parecem-me razoáveis. Contudo, confesso que fico um pouco apreensivo: É que a demolição, ainda por cima de quarteirões inteiros, deve ser o último recurso. Estarão esgotadas todas as outras possibilidades?

2. Os quarteirões em causa, assim à primeira vista, não aparentam um grau de degradação física superior a outros que a SRU se propõe a reabilitar em vez de demolir, o que demonstra o quão excêntrica é esta proposta quando comparada com uma prática de intervenção, já mais ou menos sistematizada, tendo por referência os quarteirões-piloto: recuperação dos quarteirões, respeitando a sua especificidade arquitectónica e aproveitando as potencialidades dos logradouros. Em contrapartida, o que é bem visível é a degradação social, exposta pela prática da prostituição. Mas para resolver este problema, será o camartelo o instrumento mais eficaz?

na Trindade

3. A SRU tem aqui um problema bicudo: o proprietário do edifício com maior presença no quarteirão não esperou por ninguém e iniciou ele próprio obras de reabilitação do seu imóvel (ver foto). Decisão de louvar e um exemplo para todos os proprietários da baixa. Agora com que cara vai a cidade (porque a SRU deve ser o nosso "braço armado") dizer a este diligente proprietário que todo o seu trabalho e investimento será em vão porque aquilo tudo é para ir a baixo? Todos os recursos que temos – privados e públicos – são escassos e esta realidade devia exortar à planificação e à coordenação de esforços, caso contrário continuaremos a gastar muito para muito pouco.

(OBS: sobre este assunto não há muito por onde se fugir: ou a obra é clandestina ou a obra se encontra devidamente licenciada. Se a obra é clandestina, o embaraço para a Câmara é enorme porque afinal de contas esta decorre literalmente debaixo das suas barbas, podendo até a fiscalização ser feita a partir da janela de um gabinete qualquer. Se obra é legal, então existiu uma falha de comunicação).

4. Nisto de demolições na baixa já dava para uma grande exposição com sucesso garantido e que deixo aqui, à laia de sugestão, à SRU, à Câmara ou a quem tiver capacidade e vontade de se chegar à frente: O Porto Desaparecido – Uma Longa História de Demolições. Era só recolher informação iconográfica, cartográfica e escrita sobre a cidade demolida, juntar-lhe talvez alguns 3D e teríamos uma exposição interessante e pedagógica (não necessariamente apenas para os miúdos das escolas). Exemplos não faltam: Aliados (Bairro do Laranjal), Mouzinho da Silveira (Rio da Vila e margens), Praça do Infante, Estação de S. Bento (Mosteiro Avé Maria), Avenida da Ponte, Palácio de Cristal, Rua Álvares Cabral, etc. etc. A complementar esta exposição uma outra: O Porto Que Nunca Existiu – Uma Cidade de Papel. Esta seria feita a partir dos inumeráveis projectos para a cidade que durante séculos não saíram do papel. Qual seria o aspecto da cidade se todos os planos e projectos imaginados tivessem sido levados a cabo? Como seria o Porto com o Hospital de S. António construído segundo o projecto original? Se o plano das grandes avenidas tivesse saído do papel? Se os Aliados se tivessem prolongado por ali acima demolindo a Trindade? Se todas as pontes, túneis e teleféricos de Menezes tivessem sido levados a sério? Se todo o Bairro da Sé, numa febre racionalista, tivesse sido demolido (à imagem do que aconteceu à Alta da Coimbra)? Enfim, somos um pouco uma cidade feita à custa de demolições e projectos inacabados.

(OBS: Há muito que alimento esta ideia. Se alguém achar que a coisa tem pernas para andar, estou pronto para o que der e vier. O meu contacto está aí em baixo.)

5. Voltando ao assunto inicial. Uma das vantagens da demolição daqueles quarteirões seria a libertação de espaço que permitiria a criação de espaços verdes. Eu gosto de espaços verdes. Não sei se o custo compensará, mas isso teria qualquer coisa de justiça poética: depois de a Metro ter imposto uma Avenida dos Aliados lítica e depois de Souto Mouro num rasgo de preguiça (daquela espécie de preguiça que só é consentida aos génios) ter plantado uma eira granítica e árida na frente da Estação da Trindade, alguém começa a sentir falta de verde. Já era sem tempo! Mesmo assim, continuo a ter algumas reservas quanto à ideia da demolição...

6. Só espero que a demolição do parque de estacionamento da Trindade seja mesmo para ir em frente (cá entre nós: já ouvi dizer por aí que esta demolição faz, já há algum tempo, parte dos planos da Câmara...). Aquele mono faz-me cá uma espécie...

7. A propósito de estacionamento: a cidade tem aqui mais uma equação irresolúvel. Sabendo que a capacidade de atracção da Baixa junto da classe média/alta e em particular, junto das famílias, será tanto maior quanto maior for a sua capacidade de assegurar estacionamento, a SRU, com toda a lógica, tem vindo a estudar soluções em que se assegure o estacionamento para residentes no próprio quarteirão ou nas suas imediações. Essas soluções passam por protocolos com os estacionamentos já existentes, pelo aproveitamento do miolo dos quarteirões, pela construção de estacionamentos especialmente vocacionados para residentes sejam eles subterrâneos ou em altura, e pela reserva de lugares na rua. Cada situação pede uma solução apropriada. Todavia e sem prejuízo desta estratégia, parece-me necessário acautelar os seguintes aspectos: a) Quantos lugares de estacionamento residencial se pode criar, sem ultrapassar a capacidade de escoamento da rede viária existente? É muito importante estudar esta questão, não vá uma solução se transformar num problema ainda maior. Quanto a mim parece-me óbvio que os lugares de parqueamento de nada servirão se os utentes não conseguirem lá chegar (este problema poderá ser mitigado através de uma mudança nos horários praticados e dos ritmos da cidade, isto é, pela diversificação social e económica e, como é óbvio, pelo aperfeiçoamento da rede de transportes públicos); b) Temo que em algum momento se caia na tentação fácil de se sacrificar o interior dos quarteirões para se criar aí estacionamento, em vez de estes servirem de espaços verdes e de lazer de uso comunitário (trata-se, de resto, de uma questão já por mim levantada aquando da discussão pública do Masterplan – Contrato de Cidade).

8. A recuperação da ideia lançada nos anos 90 (aquando da elaboração do estudo Flores/Mouzinho para o ProCom) de se ligar através da rede de Eléctrico a parte alta da Baixa à parte baixa da Baixa, via Mouzinho da Silveira, é uma boa notícia. Devemo-nos congratular sempre que o bom senso marca pontos, mas (há sempre um "mas") ao passar hoje pela Praça Almeida Garrett e pelo remate que se está a fazer a norte das ruas Mouzinho da Silveira/Flores no contexto da requalificação da Avenida da Ponte, não pude deixar de reparar que os carris não estão ser instalados! Voltamos à questão da escassez dos recursos disponíveis e da obrigação que a cidade tem de se organizar de modo a retirar o máximo proveito desses recursos. A refazer eternamente obras, qual Sísifo, é que não vamos lá.

David Afonso
attalaia@gmail.com