De: António Alves - "Comboios"
Já que estamos na Silly Season e nos falta assunto, falemos de comboios. Pelo menos deste assunto eu percebo e corro pouco risco de dizer asneiras. Luís Bonifácio tem razão quanto à impossibilidade de colocar TGV's a percorrer linhas de metro. No entanto, algumas das suas afirmações não estão correctas. A mudança de bitola é mesmo uma necessidade absoluta e devia até ser elevada a desígnio nacional, sob pena de ficarmos ferroviariamente isolados neste canto da península. Os espanhóis, ao contrário do que Luís Bonifácio afirma, já há muito que começaram a migração para a bitola europeia. O seu plano ferroviário, em plena execução, tem mesmo como um dos seus principais objectivos a mudança de bitola.
Os mais atentos a estas coisas sabem que os nossos vizinhos não chamam rede de alta velocidade à rede ferroviária cuja construção já iniciaram: chamam-lhe rede de altas prestações - conceito que inclui linhas de alta velocidade pura, linhas de velocidade elevada (200/250 km/h) para tráfego misto e outras linhas modernizadas. Neste momento possuem cerca de mil quilómetros já construídos em bitola europeia e todas as linhas novas ou renovadas, mesmo que construídas em bitola ibérica, são equipadas com travessas de dupla furação aptas a uma fácil mudança de distância entre carris. Basta desapertar os carris e apertá-los na outra furação para assim obter a mudança de bitola. Obviamente que isso implica também a mudança simultânea de todos os aparelhos de mudança de via (vulgo agulhas). Toda esta operação poderá ser feita, se bem programada, na totalidade do país, em apenas 24 horas. A mudança de bitola não implica, de modo nenhum, uma via completamente nova.
Quanto ao material circulante: para o mais moderno, cujo gabarit (1) já é o da UIC para vias de 1435 mm (e.g. os comboios pendulares), basta uma simples mudança de bogies (2). O material mais antigo, mesmo com gabarit compatível, talvez não valha o investimento, será melhor deixá-lo chegar ao seu fim de vida útil e depois efectuar a mudança de bitola já com material novo. Infelizmente, em Portugal, continuam a renovar-se vias sem se instalarem travessas bi-bitola. Só agora se começa a abordar este assunto. Não é por falta de aviso dos técnicos que tal operação não se faz, mas por pura ignorância dos políticos.
A ligação em velocidade elevada (mais do que suficiente para as nossas distâncias) do Grande Porto à Galiza é uma obra urgente. Não nos devemos distrair e deixar enganar. Devemos manter toda a pressão possível para que seja construída o mais rapidamente possível. Uma outra linha, infelizmente bastante esquecida, é a Linha do Douro. Esta linha, se houver vontade política e empenho da região, poderá vir a tornar-se um excelente vector de desenvolvimento para a Área Metropolitana do Porto, para a Região do Douro e também para todo o Norte. Se for integralmente renovada, electrificada e retomada a sua ligação a Espanha, facultando-nos uma ligação a Salamanca. No sentido contrário liga esta importante região interior de Espanha ao mar.
Em Salamanca está em construção um grande porto seco. Uma infra-estrutura logística que beneficiaria muito com uma ligação mais directa ao Atlântico. Se a ligação transfronteiriça fosse retomada e um grande cais de trasfega de contentores fosse construído na margem do Douro, em Foz Côa, Salamanca ficaria apenas a 150 km do mar. O Douro e o Porto de Leixões podem ser a porta de saída marítima para toda aquela região. O turismo também é um sector que muito lucraria com a reabertura deste canal ferroviário internacional. Nos dois extremos desta linha existem duas cidades cujos centros históricos são património mundial da UNESCO: Porto e Salamanca. A região por ele atravessado, o Douro vinhateiro, património mundial também é. De património mundial a património mundial atravessando património mundial. Haja visão!
Estranho, desde sempre, o completo mutismo da Associação Comercial do Porto em relação ao abandono a que está votada a Linha do Douro. Estranho também que se tenha deixado enganar com a promessa da Linha Aveiro-Salamanca, quando tem aqui uma já pronta, cujo nascimento muito a ela se deve, pois foi fruto da burguesia oitocentista portuense. A Linha do Douro liga Leixões ao coração de Espanha e daí à Europa. Devido ao seu traçado nunca permitirá velocidades muito elevadas. Mas a grande velocidade não é factor de grande peso no transporte de contentores pesados: a fiabilidade, pontualidade e baixo custo são mais importantes.
Em Espinho, com o enterramento da via, estão a consumir-se mais recursos do que aqueles que seriam necessários para renovar a Linha do Douro de Caíde de Rei à Barca D'Alva. A falta que um governo regional nos faz!
Boas Férias para quem já está de férias! :)
António Alves
1 - volume máximo dum veículo ferroviário.
2 - chassis que suporta um conjunto de rodados.