De: David Afonso - "A noite dos pirilampos"
Fico um pouco perturbado com a euforia noctívaga que tomou conta da Baixa do Porto. De repente, em cada esquina surge mais um bar e as ruas nas noites de sexta e sábado estão repletas de gente, como se todos os fins de semana acontecesse um mini-São João. Assisti ao lento declínio da Baixa desde dos anos 80, com a fuga da população e dos negócios e com a traição da Universidade e à agonia da vida nocturna. Aos poucos foram morrendo os meus sítios (Café Luso, Maldoror, Bacalhau,…) e a Ribeira vendeu uma boa parte da sua alma ao turismo (salvou-se o Mercedes e, claro, o Pinguim mais lá em cima, na Rua de Belmonte), tornando-se desinteressante, postal para inglês ver. Houve tempos em que o melhor a fazer era sair do Porto e ir pregar para outras freguesias.
Mas, de súbito, a noite renasceu e ultrapassou as expectativas mais pessimistas. O ritmo é alucinante e parece não haver semana em que não abra um bar novo (quantos estarão devidamente licenciados é outra conversa). Eu sou da noite: penso, trabalho e converso melhor à noite, de preferência pela madrugada dentro. Mais: estou convicto de que a invenção da noite teve um potencial emancipatório e civilizador, acelerou a cultura e ajudou a tornar as estruturas sociais mais fluidas e dinâmicas, tornou as cidades mais coesas pela densificação da sociabilidade ao mesmo tempo que as tornou mais ricas em todos os aspectos. Sendo assim, o que me perturba na movida portuense? Não sei precisar lá muito bem, mas pressinto uma certa esterilidade e inconsequência nisto tudo. Não me livro da desconfiança de que da mesma maneira que toda esta gente apareceu de um momento para outro, também desaparecerá sem deixar rasto. Trata-se afinal de copos e apenas copos. Não há produção, usufruto e circulação de espectáculos (pelo menos a uma escala proporcional à quantidade de gente que deambula por ali de copo na mão). Não abrem livrarias e as que existem persistem no que de pior sabem fazer. Não existem exposições independentes e estimulantes. Cinema nem vê-lo e o que vai compondo a coisa ainda é o teatro, mas sem novidades de maior. Em muitas cidades, sair à noite não é apenas tomar copos. Entre nós, a noite tem qualquer coisa de bovino, uma mera transumância de copo da mão. Estes pensamentos tomaram conta de mim, na semana passada quando fui “fazer a ronda” pelas Galerias Lumiére: ao som da música idónea, inócua e inodora resgatada ao fundo do baú das más recordações dos anos 80, uma turva de idade indefinida baloiçava por cima daquilo que tinha sido uma das melhores salas de cinema da cidade transformada, agora, em parque de estacionamento subterrâneo privativo. Mas a cerveja é barata e a música não incomoda. É a noite dos pirilampos.