De: Pedro Bismarck - "A cidade que está lá dentro"
Os últimos projectos promovidos pela SRU e pela CMP, bem como a minha experiência quotidiana e diária pela Baixa, colocam-me num estado galopante de crescente cepticismo.
Conceber um túnel-estacionamento de cerca de 1 km, para além de megalómano e pouco credível, é partir de um equívoco que tem conduzido, aliás, toda a acção da SRU. Porque propor um sistema totalmente suburbano (onde eu estaciono o meu carro e entro directamente em casa) é ignorar o sentido específico do Centro Histórico, é ignorar as razões que lhe dão a sua consistência e o seu valor. É ignorar o sentido elementar e as possibilidades da urbe: porque quem vem para o Centro Histórico não quer ter carro, irá vendê-lo, irá aproveitar as possibilidades do espaço público, da marginal na Ribeira e do comércio em Santa Catarina.
O equívoco da SRU está em querer construir uma outra cidade. Não quer o Porto, não usa o material disponível, os meios existentes, a escala da Cidade. Quer a classe alta onde ela nunca esteve, com os seus carros estacionados à porta (ou mesmo dentro de casa: ver o caso da reabilitação proposta para a Rua Mouzinho da Silveira). Quer as reabilitações quarteirão-a-quarteirão no seu Shopping Center Style, porque assim é que é rentável e porque assim é que é a lei do mercado. Mas esquece-se que ao construir nessa grande escala de intervenção está a ir contra a cidade que quer reabilitar. Porque o Centro Histórico é micro-escala, é pequena intervenção, é estrato sobre estrato, é história e património, é único e é singular. E essa é a marca da sua diferença: ser in-vulgar. Não basta importar estratégias suburbanas, é precisar re-construir a partir dessa sua singularidade, porque então arriscamo-nos a destruir aquilo que queríamos salvar, e para isso que se deixe tudo como está e se faça tudo mais lentamente, mas com menos fogo-de-artifício. Porque falamos de muitos séculos de história, porque falamos de um potencial turístico, e de um potencial de vida e de urbe, que se arrisca a desaparecer. E isso também acarreta custos - económicos, históricos, sociais. Reabilitar é caro, reabilitar bem é ainda mais. Mas o valor de uma recuperação cuidada cresce no tempo, traz mais-valias, enquanto a má intervenção traz custos acrescidos, de manutenção, de perda irreparável do carácter da cidade. Dizem que a intervenção tem de ser apoiada nos privados, muito bem, de acordo, mas se o Túnel pode ser objecto de comparticipação do QREN, porque não pode sê-lo a reabilitação do próprio edificado? Quantas casas poderiam ser reabilitadas com o dinheiro utilizado na construção desse túnel?
Mas aquilo que ainda assim me deixa mais céptico, não são estas manobras de marketing, é a insistência neste modelo de Reabilitação. Porque quem quer sair de casa directamente para o carro não quer viver no Centro Histórico, irá viver em Gaia ou na Maia. Porque a classe alta não vai deixar a Foz, nem que esse túnel desemboque directamente na Praça do Império. Porque quem quer viver no Centro Histórico, como em todas as cidades da Europa, são pessoas que procuram a singularidade única do Centro, a sua diferença face à suburbanidade homogeneizada. São pessoas que procuram estilos de vida alternativos, que não têm carro, mas que procuram um espaço activo de equipamentos públicos e actividades culturais. Procuram a presença de estrangeiros e o contacto com o comércio e com associações. E isso é que é ser cosmopolita, e isso é que é ser cidadão. Não é essa palermice de vir sair à noite à Baixa entre as 00h e as 04h, porque é a moda, beber e urinar nas ruas, estacionando selvaticamente, sem saber sequer o nome das ruas onde se está.
Não somos cosmopolitas, mas temos uma cidade com um potencial imenso, com uma singularidade única. Para ser cosmopolita é preciso também estar no mundo, ver o mundo - viajar. E é isso que falta aos diversos elementos que compõe o executivo da SRU e da CMP: viajar, reconhecer cidades, conhecer estratégias urbanas. Sair do Porto. Porque é isso que advém de todos estes recentes projectos: um misto de provincianismo naif ao serviço de uma lógica de mercado pouco esclarecida. (veja-se: esplanadas do Piolho, Praça do Moinho de Vento (CMP); quarteirão Sá da Bandeira, Praça Carlos Alberto, Cardosas, Praça de Lisboa, etc...) Faltam critérios para esta reabilitação, critérios claros, específicos - económicos, claro, mas também arquitectónicos, sociais,... Falta discutir esses critérios, falta discutir projectos. Faltam as entidades públicas e as instituições privadas. Falta o poder político e as entidades académicas. Faltam obviamente os arquitectos. Mas faltamos todos nós ainda.
Só nesse debate poderemos encontrar uma plataforma de critérios que possam orientar uma reabilitação: urbana e credível, pública e cosmopolita. E só nesse debate poderemos evitar esse perigo, absolutamente paradoxal mas iminente, da suburbanização do Centro e da homogeneização e vulgarização da Baixa. E para isso não me basta a Time Out para me dizer que posso ir a Serralves e passear na Baixa (muito obrigado, mas já conheço). É preciso sim, antes de mais, procurar os mecanismos para a reabilitação desse debate e dessa discussão. Transformar o Porto num espaço urbano qualificado e não num parque temático de diversões aberto das 22h-04h aos fins de semana.
Pedro Bismarck