De: David Afonso - "Parque Escolar: a árvore e a floresta"
Para não confundirmos a árvore com a floresta, convém ter presente que se é verdade que o abate de árvores em meio urbano é muitas vezes inevitável, também é verdade que raramente são tidas em consideração no desenvolvimento dos projectos urbanísticos. São vistas como um adereço de paisagem e o seu abate um mero dano colateral que pode ser redimido pela plantação de novas árvores noutros locais. Ora, uma árvore numa cidade tem uma importância suplementar que ultrapassa o mero biologismo. Estas são as nossas árvores a que nos habituámos a ver a todos os dias, que nos assinalam o passar das estações, que compõem não só a paisagem que contemplamos da nossa janela como também a nossa paisagem interior. Há qualquer coisa de filisteísmo na facilidade com que descartamos as árvores do nosso habitat.
O Tiago trouxe-nos aqui o caso do Filipa de Vilhena, mas também poderíamos falar do Aurélia de Sousa ou do Carolina Michaelis. Provavelmente outros casos existirão, mas o facto de encontrarmos pelo menos três casos no Porto em que a ampliação de escolas se fez às custas das árvores permite-nos concluir que não estamos perante a excepção mas perante a regra. É evidente que a Parque Escolar – empresa coordenadora destas intervenções – não tem em consideração esta dimensão da realidade urbana. Parece-me, no entanto, que devemos integrar este “pequeno” problema do abate indiscriminado de árvores num contexto mais alargado. Tudo isto é apenas reflexo de uma mentalidade administrativamente anacrónica que centraliza, verticaliza e exclui a cidade e as suas comunidades das decisões que lhes dizem directamente respeito. É a velha tradição nacional do burocrata paternalista que não nos quer incomodar com coisas que nos ultrapassam, a nós que não possuímos carta de alforria do tecnocrata ou do político. Mais do que árvores convém discutir a floresta.
Trago comigo duas questões e gostaria de sair daqui com alguma resposta. A primeira questão prende-se com a ausência de concurso público para a concepção do projecto de arquitectura. Considero inadmissível que esta importante operação de remodelação do parque escolar seja atribuída sem qualquer critério evidente de uma forma directa a meia dúzia de gabinetes de arquitectura. Mas porquê o arquitecto A ou B em vez de C? Qual a transparência destas adjudicações directas? E como é possível que a Ordem dos Arquitectos que é capaz de armar um escarcéu por dá cá aquela palha mantenha uma postura tão discreta quanto a este assunto? Recordo que esta operação deverá se estender a 330 escolas até 2015. É muita adjudicação directa e o silêncio é ensurdecedor. A questão do concurso público não é uma questão meramente corporativa: é sobretudo uma questão de transparência, por um lado, e de instigação da criatividade, por outro lado. Numa sociedade aberta, a transparência e lisura dos procedimentos administrativos públicos devem ser cultivadas por quem de direito. Quando tal dever não é cumprido, deve a sociedade civil obrigar os poderes político e judicial a corrigir a aberração. Temos o direito saber quais os critérios que levaram à selecção de um determinado arquitecto e de um determinado projecto e temos esse direito porque as escolas fazem parte do nosso património urbano, porque as nossas crianças frequentam essas escolas e porque tudo isso é pago com o dinheiro dos nossos impostos. Por outro lado, é notório que os projectos em execução são, salvo raras excepções, medianos para não dizer medíocres. Tenho a certeza que a protecção (política?) gozada por alguns gabinetes prejudica a capacidade de inovação. Mesmo em cidades como o Porto e Lisboa, os edifícios das escolas secundárias têm uma relevância simbólica assinalável e uma presença na paisagem urbana inegável. Esta poderia ser a oportunidade de fazer um upgrade da sua qualidade estética e ambiental, mas tal só se me afiguraria possível num contexto de concurso público verdadeiramente exigente e competitivo e, acrescento, em que as propostas pudessem ser alvo do escrutínio de todos os interessados, o que englobaria necessariamente a comunidade escolar e local. E este é já o meu segundo problema.
A escola, para bem e para o mal, é um dos principais reprodutores da ordem social e todo este processo de requalificação do edificado escolar ilustra bem o processo de reprodução social. Os projectos são impostos à comunidade escolar por uma entidade mais ou menos abstracta que detém o poder para tal. Professores, pais e alunos são informados do que vai acontecer através de painéis (que nem sempre incluem 3Ds que facilitem a descodificação da informação) mas não participam no processo, reproduzindo-se em pequena escala a maneira tortuosa de fazer cidade à qual nos fomos habituando nas últimas décadas: manda quem pode, obedece quem deve! Até podemos ensinar os valores cívicos da democracia nas nossas escolas, mas não os podemos exercer porque somos esmagados pelo estado de emergência dos períodos eleitorais e pela prepotência dos técnicos. Desse modo, na escola aprendemos que a cidade é uma coisa que nos acontece e não uma coisa que fazemos. Naturalizamos a opacidade das decisões dos técnicos do urbanismo e a impotência da cidadania. Longe de mim propor a interrupção destas obras. Não me venham com o anátema de inimigo do progresso. Simplesmente, para mim progresso seria aproveitar este Programa de Modernização das Escolas do Ensino Secundário para introduzir a problemática da cidade e da cidadania nas escolas. Em vez de reproduzir os vícios da ordem instituída, a escola tem o dever de romper com estes atavismos totalitários. Os professores, os alunos, os pais e toda a comunidade escolar têm o direito de participar na concepção e desenvolvimento destes projectos. Não faria mal nenhum que um aluno ou professor ficasse a saber quanto custa construir uma escola e quanto custa a sua manutenção. Também não faria mal nenhum ao arquitecto ou ao engenheiro voltar literalmente à escola para aprender um pouco mais sobre os seus próprios projectos. Ainda faltam algumas centenas de escolas para tentarmos fazer as coisas como deve ser. Assim, talvez não consigamos salvar todas as árvores, mas a floresta ficaria bem mais respirável.