De: TAF - "A emissão pirata de moeda"

Submetido por taf em Domingo, 2008-09-21 03:10

NOTA: texto corrigido após alguns comentários, que agradeço, sobre a definição do agregado M3. De facto eu tinha usado mal o conceito, mas não é relevante para o raciocínio. Acrescentei também dois apontadores no final.


Inaugurações em Miguel Bombarda


Este caso do estudo das cheias relatado aqui pelo Alexandre convenceu-me a escrever este texto, que comporta algum risco porque vou tratar de assuntos nos quais não sou especializado. Trata-se desta enorme confusão que vai nos mercados financeiros, e que provou que afinal a esmagadora maioria dos especialistas não percebeu nada do que se estava a passar. Pior que isso, essa gente não se inibe de continuar a opinar como se não lhe tivessem passado ao lado enormes fragilidades e irracionalidades no sistema financeiro, com as quais supostamente contactariam todos os dias! Tal como nas cheias, também no sistema financeiro não podemos confiar nos especialistas.

Tirando algumas figuras que merecem respeito porque há muito avisaram quanto ao que aí vinha, como Warren Buffett ou George Soros, quase todos os outros se limitam a citar autores famosos e a mostrar grande erudição (certamente muito maior que a minha, pelo menos neste campo), mas sem que isso lhes tenha trazido grandes resultados. Por isso vou tentar eu explicar à minha maneira, partindo daquilo que observo e sobre o qual reflicto, alguns aspectos que me parecem relevantes. No que escrevo a seguir vou fazer algumas simplificações, ignorando fenómenos de segunda ordem, para que a exposição se torne mais compreensível. Perdoar-me-ão também se não utilizar a terminologia técnica mais adequada, pois não sou um virtuoso em macroeconomia e finanças, mas espero que se compreendam quais os conceitos aos quais faço referência. Peço a quem considerar errada a minha opinião (que já comecei a tentar explicar nos comentários a posts no Insurgente e também um pouco no Norteamos) que tenha a caridade de me explicar claramente, e concretamente, em quê e porquê, sem se refugiar em referências ou conceitos exóticos. Eu só percebo coisas simples. (Ao que se vê, os especialistas parece que nem isso...)

O dinheiro, como se sabe, é uma convenção. Baseia-se na confiança da sociedade, como um todo, no "sistema". O dinheiro hoje em dia já não é sequer uma representação de uma reserva de ouro que existe algures num cofre-forte. Por isso os bancos centrais podem imprimir notas, criando efectivamente moeda a partir do zero. Apesar de à primeira vista esta "magia" parecer muito estranha, compreende-se por que razão ela funciona e quais as consequências do seu mau uso. Sem grande tempo para procurar referências, encontrei contudo dois pequenos textos que se referem a isto e que podem ajudar quem nunca tinha pensado no tema.

O conceito de "dinheiro" que me interessa agora é bastante lato, juntando aquele que aqui cabe na classe "M3" com acções cotadas em bolsa e similares (explico porquê abaixo). Acontece que, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas (e possivelmente os tais especialistas), não são apenas os bancos centrais que "emitem moeda". Na economia há outros* mecanismos que são exactamente equivalentes à emissão de moeda e também à sua retirada do sistema. Dividi-los-ia em dois tipos: o "Bom" e o "Mau".

O "Bom" é aquele correspondente à criação real de riqueza e explica-se bem com um exemplo simplificado. Vamos imaginar que a Ana cria uma empresa que é cotada em bolsa. O património dessa empresa é constituído pelas esculturas dela, e cada acção começa por valer 1 euro, havendo 1000 acções no total. Se a Ana, trabalhando na empresa sem contrapartida financeira nenhuma, for criando mais esculturas, o património da empresa vai aumentando e portanto o valor de cada acção vai também subindo. Ao fim de algum tempo supostamente valeria 10 euros (no sentido de que só seria vendida por esse preço). Como não houve nenhuma entrada de dinheiro, por causa disto de facto o mundo ficou mais rico 9 euros por acção da empresa da Ana. Ou seja, há mais 9000 euros na massa monetária total, correspondentes a algo real que foi "criado do nada". Essa riqueza ficou na posse dos detentores das acções, e tudo o resto no mundo se manteve inalterado. Moral da história: a Ana efectivamente "emitiu moeda" no montante de 9000 euros. (O caso oposto, de retirada de circulação de moeda, seria destruir-se uma escultura, por exemplo, diminuindo o valor das acções.)

O "Mau" também se apresenta com outro exemplo simplista. Eu compro em bolsa uma acção X (de uma empresa qualquer) a 1 euro. Pago em dinheiro vivo, mesmo. Um amigo meu, combinado comigo, faz semelhante: compra uma acção Y a 1 euro, também paga cash. Imaginemos depois que durante um período não há mais transacções destas acções em bolsa a não ser as que eu e o meu amigo realizamos. Eu vendo-lhe a minha X por 2 euros e ele paga-me com a dele Y que diz valer também 2 euros (e eu acredito). Eu fiquei portanto com uma Y “a valer 2″ e ele com uma X “a valer 2″. Mais tarde vendo-lhe de volta a Y, mas por 4 euros. E ele paga-me com a X que supostamente já vale também 4. Quer eu quer ele quadruplicamos o nosso investimento inicial: eu tenho uma X que supostamente vale 4 euros, e ele uma Y que supostamente vale 4 euros. Sem qualquer contrapartida financeira nem geração de "riqueza real" (ao contrário do caso da Ana), também aqui "emitimos moeda" e ficámos com ela para nós. (No mundo real isto não se passa apenas com duas pessoas, o que acontece é que há negócios "em circuito fechado" entre muitas.)

Repare-se que até se pode transformar esse valor das acções em cash: eu posso ir ao banco pedir um empréstimo** de 4 euros, dando como garantia a minha acção. O banco, todo contente, passa-me o dinheiro para a conta à ordem com base na cotação actual. O Pedro Menezes Simões explica aqui (comentário 10) que "os bancos podem utilizar acções, de forma parcial, como componente dos rácios de capital que têm que manter (e que são uma componente relevante na capacidade multiplicadora de dinheiro dos bancos). Pelo que, se as acções sobem, os bancos conseguem multiplicar mais o dinheiro. E quando descem reduz-se a sua capacidade de multiplicação do dinheiro (ups, é preciso fazer aumentos de capital, i.e., ir buscar dinheiro "vivo")".

Esta capacidade multiplicadora dos bancos é criação de moeda aceite pelas autoridades monetárias. Como o valor das acções pode ser facilmente convertido em cash através de empréstimos bancários garantidos por essas mesmas acções (mesmo que não a 100%), é como se a moeda “virtualmente” já existisse. (Neste caso não é importante determinar com exactidão a quantidade de moeda, mas apenas se há ou não criação, e ter uma ideia rude de quanto é.)

Por que é que o "dinheiro mau" é mau? O caso é igual à emissão de moeda por um banco central. Quando há mais dinheiro a circular mas não se gerou "riqueza real", há inflação. Por outras palavras, o que existe disponível para ser comprado é o mesmo, só que há mais dinheiro: logo, os preços aumentam. Contudo, ao contrário do que se passa quando é o banco central a emitir, neste caso há efectivamente uma apropriação de riqueza por parte destes "emissores privados de moeda". É "enriquecimento sem causa", é um roubo puro e simples ao resto da sociedade. Já o caso da Ana era saudável: ela emitiu moeda mas não provocou inflação porque, além da moeda, introduziu no sistema o valor correspondente: as suas obras de escultura.

O que se estava a passar no sistema financeiro, em larguíssima escala, era entre outras coisas também isto: emissão privada de moeda em operações financeiras sofisticadas (sem introdução de dinheiro fresco no sistema nem criação de riqueza, portanto). Estava uma minoria a roubar uma vasta maioria. Tinha de acabar mal.

A ver pela reacção completamente irresponsável das bolsas na Sexta-feira passada, com uma subida louca e insustentável, o mercado não terá percebido isto. Da maneira que as coisas estão no Porto e no Norte, se os impactos são graves em regiões comparativamente ricas, vai ser muito pior aqui. Preparemo-nos.

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* Um outro exemplo de "emissão de moeda" é a atribuição de capacidade construtiva a terrenos, conforme explica por exemplo Sidónio Pardal.

** Note-se que, ao contrário do que se escreve aqui, na prática a emissão de moeda não se dá apenas no momento da concessão de crédito bancário. O simples facto de o mercado reconhecer um valor acrescido "surgido do nada" já consuma a "emissão de moeda", pois esse património é desde logo negociável.

Apontadores interessantes:
- Buffett warns on investment 'time bomb' em 2003!
- To the Shareholders of Berkshire Hathaway Inc. (a carta de 2003, ler a partir da página 13)