De: Carlos Lacerda - "As Gaivotas do Rui Rio"
Um extenso grupo de aves substitui os cidadãos do Porto no protesto lógico e indignado, que deveria ser o de todos nós, perante a barbárie!
Quando estou em Portugal resido a vinte metros do Porto, que é como quem diz do outro lado da Circunvalação, num nono andar debruçado sobre o Parque da Cidade. Quem aterra em Pedras Rubras em dia de nortada (os aviões aterram sempre contra o vento…) e de repente olha pela escotilha, fica surpreendido ao ver tão extensa área verde pejada de lagos, arvoredos e relvados que se espraia desde a Boavista até ao mar, numa extensão de muitos e muitos hectares. É o Parque da Cidade, o Central Park cá da Invicta! Muita gente talvez não saiba, mas o Parque da Cidade é uma das raras obras que o Porto possui com dimensão e relevância nacional.
Todos os dias vagueiam pelo parque centenas de pessoas a fazer jogging e caminhadas, a andar de bicicleta; aos domingos revezam-se milhares de merendeiros e famílias, casais de namorados, desportistas Nike ou Sport Zone conforme as bolsas, ou simplesmente povo anónimo que desfruta deste fantástico espaço onde co-habitam milhares de patos e outros pássaros seus parentes, uns coelhinhos brancos à solta, para surpresa dos passantes, e 5 "securitas" que agora andam montados numas caranguejolas com duas rodas a fazer não se sabe bem o quê! Como diz um amigo meu: o Parque da Cidade é assim como um imenso campo de golfe, só que não tem buracos…
Já a Ordem dos Engenheiros atribui-lhe definição mais séria: numa placa timbrada em latão (recentemente vandalizada…), na entrada nascente do Parque, declara-se que "A Ordem dos Engenheiros decidiu incluir o Parque da Cidade na lista das 100 melhores obras de engenharia realizadas em Portugal no século XX" e por baixo perpetua o nome dos seus projectistas. Se pensarmos que em 100 anos se fizeram em Portugal centenas de milhar de obras de engenharia, ser "uma das 100 melhores" dá uma ideia da importância desta obra!
O Parque da Cidade deve colocar-se claramente ao nível da Torre dos Clérigos, da Muralha Fernandina ou da Ponte Luiz I sem que nada lhes fique a dever, com a devida contextualização. Há cerca de um ano assisti da minha janela, entre incrédulo e angustiado, a um autêntico acto de terrorismo autárquico! Rui Rio deu a sua concordância para que os seus serviços destruíssem uma parte importante desta obra ímpar e alcatroassem mais de 40.000 metros quadrados (leu bem, 40 mil!), para construir uma pista de aviação (com 750 metros de comprimento) e dois heliportos, a fim de albergar uma corrida de avionetas destinada em última instância a publicitar uma marca de refrigerantes! A "Red Bull Air Race" em pomposa designação inglesa, que voltará daqui por uns dias…
Como não me passa pela cabeça que alguém autorizasse demolir 20 metros da Torre dos Clérigos ou destruir parte da Ponte D. Luiz para passarem avionetas, ainda hoje não consigo perceber como é possível passar impune este crime de lesa-cidade que numa das mais emblemáticas obras do Porto substitui 50 mil metros quadrados de zona verde por tapete betuminoso a troco duma corrida de aviões duma marca privada de refrigerantes, paga pelo erário público!
Há duas semanas que assisto da minha janela a outro inusitado fenómeno: milhares de gaivotas trocaram os seus poisos habituais em Matosinhos pela morna temperatura da extensa pista de aviação construída por Rui Rio! Passam aí longas tardes, serenas e imóveis, num espectáculo de estádio olímpico chinês, defecando generosa e repetidamente nessa imensidão de asfalto! Uma ruidosa máquina de água à pressão e 3 funcionários diligentes tentavam há dias ingloriamente limpar o có-có das gaivotas de tão "importante" aeródromo, num afã próprio de véspera de corridas.
Julgo que este inusitado fenómeno deveria ser registado nos Anais da Cidade, pois creio que é a primeira vez que um extenso grupo de aves substitui os cidadãos do Porto no protesto lógico e indignado, que deveria ser o de todos nós, perante a barbárie! O título desse Registo só poderá ser um: "As Gaivotas do Rui Rio"! Honra seja feita às gaivotas…
Carlos Lacerda