De: David Afonso - "Indústrias Criativas"

Submetido por taf em Terça, 2008-08-12 09:48

1. As recentes movimentações no sentido do desenvolvimento de um cluster das Indústrias Criativas na Região do Norte da responsabilidade da Fundação de Serralves, em parceria com a Junta Metropolitana do Porto, da Casa da Música e da Porto Vivo resultaram, para já, num Estudo Macroeconómico levado a cabo pelo consórcio constituído pelas empresas Tom Fleming Creative Consultancy, Horwath Parsus Portugal, Opium, Gestluz e Comedia. Ao ler o relatório, a primeira sensação que nos assalta é a de já estarmos a entrar muito atrasados nesta vaga e de termos perdido muito tempo e trabalho feito. A Porto 2001, ela própria uma tentativa de reacção tardia, deveria ter sido o impulso fundador deste sector. Hoje seria tudo mais fácil se não se tivesse feito tabula rasa do trabalho já feito (com excepção da Casa da Música, claro). Aquilo que foi apontado por alguns como mera despesa, aparece-nos agora como fonte de desenvolvimento.

2. Uma das razões que poderá explicar o atraso com que chegou até nós o conceito de "indústrias criativas" terá a ver com o facto de se tratar de um conceito particularmente vulnerável às críticas vindas quer da esquerda quer da direita. Da esquerda argumenta-se que se trata de uma política elitista que privilegia um grupo social minoritário. Esta crítica ganha especial relevo em contextos de depressão social e económica. A lógica é simples: enquanto houver fome, nem um tostão para a cultura. A argumentação da direita não costuma ser muito mais sofisticada: as "indústrias criativas" não passam de mais uma estratégia para arrancar subsídios e outras regalias ao Estado. Este argumento traduz-se muitas vezes sob a forma do anátema sobre os subsídio-dependentes. A lógica também é simples: cultura é sinónimo de despesa (ocasionalmente, estes argumentos podem aparecer reproduzidos pelo mesmo agente; a isso dá-se o nome de populismo). A aplicação prática deste modelo, todavia, parece contrariar este argumentário. As "indústrias culturais" têm efeitos virtuosos na restante economia, gerando riqueza e emprego em vários níveis sociais, permitindo inclusive recuperar áreas deprimidas das cidades, ou seja, o ponto de partida destas políticas pode até ser uma minoria específica, mas os dividendos reflectem-se transversalmente na comunidade. Por outro lado, o desenvolvimento destes clusters não obriga necessariamente à injecção maciça de capitais públicos. Trata-se de fazer escolhas criteriosas na aplicação dos recursos comuns e de reorganizar a administração e o governo da cidade e da região. E, mesmo assim, ainda podemos acrescentar que nem todo o investimento público na cultura é irracional. Alguém contesta que o Guggenheim de Bilbao não vale cada cêntimo que lá foi investido? Em todo o caso, é possível construir um cluster de "industrias criativas" sem investimentos pesados.

3. Richard Florida diz que o desenvolvimento de cidades criativas depende apenas da Tecnologia, Talento e Tolerância. No caso do Porto/Norte, pode-se falar em seis T's: aos três T's de Richard Florida acrescentamos os T's de Tempo, de Transparência e de Território. É preciso Tempo para reconstituir redes e Tempo para esperar pelos resultados. Significa isto que um dos riscos para este cluster, que convém acautelar, reside no desencontro entre o Tempo de desenvolvimento do cluster criativo e o tempo sempre curto dos ciclos eleitorais. Quanto ao T para Transparência limito-me a recordar que Bilbao não é apenas o Guggenheim. Bilbao é também o campeão da Transparência de entre 100 municípios espanhóis. Coincidência? Pouco provável. Por último, o Território do cluster definido pelo Estudo Macroeconómico divide-se em três partes: a rede de cidades do Norte de País, com especial relevo para as cidades universitárias; o Centro Histórico do Porto como o coração físico do cluster e os países de expressão portuguesa como potencial mercado de destino. Ora, salta à vista que a este Território natural de desenvolvimento das nossas indústrias criativas, que é constituído pelas redes de cidades do Norte, falta ainda uma unidade administrativa e uma autonomia de decisão sem a qual a rede será instável e indefinida porque terá um centro de decisão excêntrico em Lisboa. Ora, esta circunstância penaliza duplamente a consistência da rede porque uma rede de indústrias criativas deve ser descentrada, sem hierarquias rígidas e dotada de autonomia. Também seria de pensar num aspecto que passou ao lado do relatório, que é o da interacção com a Galiza já que esta região espanhola encontra-se a atravessar também ela por um processo de reconversão da estrutura económica. O Norte de Portugal e a Galiza poderiam ganhar muito um com o outro, bastando para isso criar os elos de ligação, alguns exemplos: um intercâmbio de estudantes do ensino superior (não existe motivo algum para que um estudante galego faça os seus estudos de 1º ciclo em Santiago de Compostela, não venha depois fazer a formação de 2º ciclo no Porto e vice-versa); troca de estágios entre as maiores empresas galegas e do Norte de Portugal; programa comum de residências artísticas, etc.

4. A mais emblemática das medidas propostas é a criação de uma "Agência para o Desenvolvimento Criativo do Norte de Portugal" o que parece fazer todo o sentido porque foi essa a estratégia seguida em outras paragens. Contudo, todos nós temos legítimas razões para desconfiarmos destes organismos estatais. A nossa experiência não tem sido lá muito positiva e habituámo-nos a ver nestas "instituições" aconchegos burocráticos para os boys e/ou para os barões dos partidos de poder. O primeiro grande trabalho desta futura agência será o de contrariar este atavismo cultural.

Admitindo que tudo correrá pelo melhor e que a agência funcionará de um modo exemplar, outra dúvida subsiste: Mas serve para alguma coisa? Esperemos que a sua utilidade seja a menor possível. É que a natureza desta economia é adversa a estruturas hierarquizadas e burocratizadas. A Agência deverá evitar o aparato institucional e o paternalismo castrador. Como diz Nuno Grande: «Dir-se-ia, a bem da verdade, que a criatividade deve ser, por natureza, livre e espontânea, não-decretada, não-regulada, não-instrumentalizada; mas, no entanto, se ela emerge, se ela se potencia, se ela se dissemina, cabe às cidades perceber o seu progressivo impacto nas respectivas economias urbanas, criando os necessários "rastilhos" para que a sua energia e o seu efeito propagador não esmoreça.» Na prática, não se pede a esta Agência que projecte planos quinquenais, nem que interfira com fúria regulamentadora. Reparem como o mini-cluster da Miguel Bombarda se impôs à revelia dos planeadores e do poder político. O que precisa de um criativo no Porto? Não muita coisa. Não precisa de incubadoras de empresas porque já temos a mãe de todas as incubadoras que é a Baixa do Porto. Ao planeador só é pedido que ajude a encontrar os espaços adequados a um preço justo e que forneça serviços de apoio como salas de reunião arrendadas à hora, secretaria virtual, etc.,. Um Gabinete Técnico de Apoio também parece ser imprescindível para responder àquelas pequenas dúvidas chatas relacionadas com a formalização de empresas, com as obrigações fiscais, com os direitos de autor, com a preparação de dossiers de candidatura a apoios e concursos públicos. Convém não esquecer que muita da nossa indústria criativa se encontra ainda no limiar entre a economia formal e a economia informal e um dos principais objectivos da agência deveria ser o de ajudar os criativos a fazerem esta transição. À Agência caberia também a tarefa de ajudar a coordenar as políticas relativas ao sector das várias autarquias abrangidas para evitar desperdícios e sobreposições (aliás, como já anteriormente defendi, os orçamentos dedicados à cultura dos municípios da área metropolitana do Porto deveriam ser geridos por uma única entidade). A nível nacional, o grande trabalho da Agência deveria ser o de conquistar um estatuto de Cidade Franca para o Porto, ao abrigo do qual os criadores que aqui se instalassem teriam regalias fiscais que poderiam ir até à isenção total por um período de tempo alargado. O Relatório atrás mencionado sugere benefícios fiscais para os investidores. Bom, e porque não benefícios fiscais para os próprios criadores?

PS: Tomo a liberdade de sugerir este blog que funciona como Diário de Obra de reabilitação do edifício das antigas instalações da Fábrica de Tecidos de Manuel Pinto de Azevedo na rua António Carneiro (Bonfim).

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David Afonso
www.quintacidade.com