De: Nuno Fernandes - "Comentário sobre «A Linha do Tua: Histórias da Ignomínia»"
Nunca tendo escrito ao "A Baixa do Porto", que desde já saúdo pela vitalidade que tão longamente vem mantendo num mundo tão bovino como este, não posso deixar sem comentário o texto de António Alves aqui publicado a 6 de Junho, "A Linha do Tua: Histórias da Ignomínia".
O investimento no Tua pode ser visto em duas perspectivas: a perspectiva da via férrea e a perspectiva da produção energética.
Na perspectiva da subsistência da via férrea (que já percorri) o seu potencial é única e exclusivamente turístico. Do ponto de vista do serviço às populações, que se limitam a uma série de povoados mais ou menos distantes da linha, literalmente dezenas de pontos ao longo do país podem ser apontados nos quais o investimento em meio ferroviário ofereceria maior usufruto às populações - basta apontar como crime capital o esquecimento a que é votada a Linha de Cintura entre Contumil e Leixões. Além disso, existirá uma cultura ou produto desse local que possa ser escoada mais eficazmente por uma linha de comboio do que por estrada?
Dando razão àqueles que criticam a antiga CP pelo encerramento sistemático de ramais de via estreita no final dos anos 80, que no caso do Tua contribuiram para a decadência da linha (nomeadamente ao nível do mau serviço prestado entre Tua e Mirandela e à picaresca ideia do 'Metro de Mirandela', cujas carruagens vieram a tomar a seu cargo o serviço em toda a extensão da linha) eu vejo-o como o estertor do ciclo de desinvestimento na infraestrutura ferroviária nacional que vigorou entre os anos 40 e 90 do século passado - e que apenas foi reequilibrado nos últimos anos devido à evidente decadência da infraestrutura básica.
Sim, porque as coisas degradam-se. Eu não tenho dados que mo comprovem mas simplesmente não acredito que, como diz António Alves, numa linha de via estreita com uma implantação tão problemática como a linha do Tua se tenham passado "...mais de 120 anos sem um único acidente...". Embora pontualmente reparada, a via possui dezenas de kms que oferecem um risco de queda de rocha significativo e seria expectável um gasto considerável na sua reparação antes de implementar um turismo ferroviário mais activo.
Agora do lado da produção energética. Eu sinceramente gostava que António Alves esclarecesse de onde tirou a conclusão de que as novas barragens "...apenas acrescentam 3% à capacidade instalada para produzir energia eléctrica a partir da força hídrica. A barragem no rio Tua acrescentará à capacidade produtiva uma verdadeira ridicularia". Isto porque fiquei impressionado com essa afirmação e até fui confirmar tal insignificância... - de resto, um resumo técnico muito sintético sobre o assunto pode ser lido neste artigo da revista da Ordem dos Engenheiros. Fiquei descansado, afinal é mesmo um plano de barragens e não um plano de mini-hídricas, tendo um impacto relevante no âmbito das energias renováveis de um país com recursos energéticos endógenos como é o nosso.
O elefante na sala não é nem a linha (desnecessária e perigosa) nem a produção energética (cujo aumento, globalmente, é indispensável) mas sim o modelo de desenvolvimento. Eu considero o Vale do Douro como uma das verdadeiras "Maravilhas de Portugal" mas não o entendo como uma obra da natureza - entendo-o como uma interacção quase perfeita entre a natureza e o homem. Foi à força bruta que se criaram os socalcos, se abriram as vias e se regularizou o rio num espelho de água contínuo. O deslumbramento que o Vale do Douro nos impõe reside em parte na sua excepcionalidade num país onde a ocupação do território se rege pelos sistemas da construção civil (ramo empreitada), da especulação da propriedade e de um turismo muitas vezes com gosto duvidoso - António Alves põe bem o dedo na ferida quando se refere aos "... parolos (autarcas), que julgam que poderão lá semear uns campos de golfe nas margens, montar uns cais de encosto para umas motas de água, e, por essa via, trazer o almejado 'desenvolvimento' para a região".
Pessoalmente considero que, no século XXI, a barragem terá um contributo maior para a generalidade do país pelas funcionalidades de produção energética e reserva estratégica de água, enquanto que ao nível local a diferença entre a manutenção do turismo ferroviário e a existência de uma barragem e albufeira não me parece muito significativa - veja-se o caso do Côa: não era suposto arrastar multidões e dinamizar a região através do nicho turístico? Porém, percebo os argumentos contrários, esgrimidos em grande parte em prol da preservação de paisagens de rara beleza (sendo caso extremo o Hetch Hetchy Valley, na Califórnia) e no facto de uma barragem nunca ser uma estrutura sustentável, daí as polémicas que a construção de cada uma sempre arrasta. A escolha do Tua é tão difícil como qualquer outra grande decisão respeitante à ocupação do território - deve por isso mesmo ser enquadrada por uma discussão séria de prós e contras, a curto e a longo prazo.
Com os melhores cumprimentos
Nuno Fernandes