De: Lígia Paz - "Mercado do Bolhão: Ideias a considerar para o futuro da cidade"
Recentemente e pelas piores razões, a discussão sobre o futuro do Mercado do Bolhão ganhou um novo impulso. De um lado, o projecto de reconversão promovido por um grupo holandês e apoiado pelo actual executivo municipal; do outro, um activo grupo de cidadãos que desejam preservar o património arquitectónico e cultural que o Bolhão representa. Esta dualidade tem-se concentrado no edificado e nos usos inerentes ao espaço comercial que o mercado representa, deixando frequentemente de lado algumas das principais questões que integram o futuro deste espaço.
Um dos problemas que o Mercado do Bolhão tem vindo a enfrentar ao longo dos últimos anos está intimamente relacionado com o consumo local e, por conseguinte, com a progressiva desertificação da Baixa do Porto. Não só tem havido uma descida acentuada das pessoas que aí habitam, como também uma profunda e notória degradação da habitação disponível nesta zona da cidade. Actualmente, os planos do executivo camarário parecem indicar uma preferência por uma reconversão de luxo, incentivando a transformação do actual parque habitacional degradado por um caro, exclusivo, e acessível a poucos - como é, aliás, o caso do próprio projecto recentemente apresentado para o interior do Mercado do Bolhão. A aceleração da especulação imobiliária é já notória em diversas zonas da Baixa, e a substituição de uma população maioritariamente pobre e envelhecida irá rapidamente dar lugar a uma exclusiva classe social de elevado poder de compra.
Esta questão é essencial em toda a problemática do Mercado do Bolhão. É importante promover a variedade de pessoas, usos, comércios; que se promova a diversidade de estratos etários e sociais. Apenas esta multiplicidade poderá garantir que o centro da cidade se desenvolva de uma forma saudável e acessível a todos. Com isto, o comércio local, no qual se insere o Bolhão, só terá a ganhar.
O aumento do número de pessoas a viver na Baixa será benéfico em diversos aspectos, nos quais se incluem: a diminuição do fluxo de tráfego (e suas consequências ambientais); o aumento de qualidade de vida para os seus habitantes; a preservação do património local. Porque o património não são apenas as fachadas dos edifícios: a sua maior riqueza reside nas pessoas, nos seus usos, costumes, tradições e hábitos culturais. Manter a aparência de um ícone cultural vivo não é preservação, é destruição do seu carácter essencial. Literalmente, uma obra "de fachada".
Retomando o referido inicialmente, sublinho que um mercado sobrevive na medida em que as pessoas nele compram. Dada a especificidade da oferta tradicional de um mercado - venda de produtos frescos -, este terá a maior fatia de consumidores em pessoas que vivam nas suas proximidades; que se possam deslocar a pé ou de transporte de curta duração, seja ele público ou privado.
É este o caso, por exemplo, do Mercado da Boquería, em Barcelona, o qual tem sido apontado como um dos possíveis exemplos a seguir. À semelhança do Bolhão, a Boquería localiza-se no centro da cidade; mas ao contrário do Porto, o centro de Barcelona é densamente povoado, dispõe de excelentes condições de acessibilidade por transporte público, e prima por um completo leque de ofertas culturais e comerciais de todo o tipo (cadeias internacionais e comércio familiar) e para todos os gostos. Para além disso, o governo da cidade chamou a si a responsabilidade pela revitalização e desenvolvimento articulados da rede de mercados municipais. É importante referir que em Barcelona não há apenas o Mercado da Boquería; há quarenta mercados espalhados pelos diversos bairros, com garantia de qualidade e diversidade de produtos – elementos que garantem que mais de 60% dos habitantes da cidade efectuam as suas compras nos mercados locais. A proximidade de um comércio de qualidade alargado tem benefícios directos na vida dos seus consumidores (redução do tempo de deslocação, produtos sempre frescos, etc), bem como para todos os habitantes da cidade (redução do fluxo de tráfego, menor congestionamento, melhor qualidade ambiental).
Encontrando potencial para repensar o modelo dos mercados do século XXI, a Câmara de Barcelona impulsionou uma estratégia abrangente para preservar e desenvolver estes espaços de comunicação e comércio. É então graças à inteligência do executivo municipal que os mercados se aliam às variadas festas tradicionais, usam painéis solares, são palcos de espectáculos diversos. Veículos para a integração multicultural, aliam-se a restaurantes, lançam livros de receitas, promovem a cooperação com organizações de fomento da coesão social, comercializam os produtos autóctones, e mais um sem-número de actividades. A actividade comercial dos mercados de Barcelona vê a sua sobrevivência e desenvolvimento não apenas na qualidade e variedade dos seus produtos, mas também na integração de actividades culturais e de lazer. Os mercados são aqui encarados como verdadeiros transmissores dos valores culturais da sociedade, contribuindo também com a qualidade dos seus produtos para o bem-estar e saúde de todos.
Os mercados de Barcelona comprovam apenas que é possível concretizar um modelo que satisfaça as necessidades das diferentes pessoas que vivenciam o espaço urbano: novos e velhos, estudantes, reformados e empregados, turistas e residentes, ricos e pobres. E é exactamente no reconhecimento e adaptação a esta fantástica diversidade que o modelo se torna economicamente viável. É também neste tipo de investimento nos espaços cívicos que se avalia a qualidade da gestão municipal de uma cidade.
Nota: Para mais informação, aconselho uma visita à secção do site da Câmara Municipal de Barcelona dedicada aos Mercados Municipais. Não é preciso saber catalão para compreender a dinâmica, qualidade e interesse do investimento local.
Lígia Paz
Doutoranda na Universidade de Barcelona e docente convidada no Mestrado em Arte e Design no Espaço Público - Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.