De: Paula Morais - "Aliados: «Só prédios, só prédios.»"

Submetido por taf em Sábado, 2006-06-10 22:54

Caros participantes,

Foi a leitura da notícia "Fez-se luz nos Aliados", mais precisamente a citação que transcreve os comentários proferidos por algumas pessoas aquando do discurso de um dos co-autores do projecto de renovação desta avenida com dimensão de praça (e a partir de agora, também com forma e com outras características), que me incitou a escrever este post sobre o principal tema da semana aqui no blogue.

De facto, e abstendo-me de comentar as opções projectuais (quer as relativas ao desenho urbano, quer à “mutilação do verde” que incluiu o corte de algumas árvores), uma vez que, no devido tempo, não existiu a tão desejável discussão pública do projecto*, ao contrário do que sucedia antes da concretização das obras de renovação, é neste momento possível ter uma percepção bastante mais abrangente de algo que antes permanecia semi-oculto por entre as copas das árvores e os bandos de pombos que nelas coabitavam: o conjunto dos edifícios que ladeiam este espaço central da Baixa portuense.

Com uma qualidade arquitectónica inquestionável, e responsáveis por oferecer, à agora avenida-praça, excelentes oportunidades para albergar actividades humanas que permitam assim revitalizar e trazer qualidade de vida a todo este conjunto urbano, é também um facto que neste momento tais edifícios não estão de todo a cumprir a sua missão. Estando grande parte deles obsoletos a nível de uso (inclusive sem aproveitamento), ou com utilizações, na sua grande maioria, bastante restritas ao público em geral (por exemplo, os Bancos e os stands de automóveis que ainda lá permanecem), bem como carecidos de simples obras de limpeza e manutenção, na minha opinião, dificilmente o espaço avenida, sozinho, conseguirá trazer pessoas para o espaço praça, ainda que com as medidas anunciadas de ocupação dos pavimentos com esplanadas. Por exemplo, à noite praticamente nenhum edifício tem ocupantes que por lá permaneçam, a não ser o caso de uma ou outra Albergaria ou Residencial ;-).

Assim, e numa época em que as preocupações de sustentabilidade ambiental se estendem também ao ambiente construído, uma boa forma de concretizar, nesta fracção do ambiente construído portuense, o princípio económico-ambiental de se conseguir o máximo rendimento e qualidade de vida com o mínimo sacrifício de recursos, a mínima hipoteca do futuro e o máximo de ciclos de reciclagem (e que aliás se resume muito bem na famosa frase “less is more” já aqui referenciada por Pedro Aroso), pode, e no meu entender deve, passar por estender o processo de renovação e requalificação dos Aliados, também aos edifícios contíguos, através de uma requalificação/actualização dos seus usos/utilizações. Trata-se deste modo de operacionalizar um verdadeiro processo de “reciclagem do edificado”, (re)aproveitando os edifícios existentes para albergarem usos mais atractivos, e cujo rendimento permita quer a reabilitação, quer a manutenção/preservação sustentáveis da estrutura física que os suporta por um prazo economicamente viável.

Para demonstrar que tal é possível, cito por exemplo o caso bem-sucedido da Avenida Paulista, localizada na cidade brasileira de São Paulo. Inaugurada em 1891, esta avenida que nasceu a partir do desejo dos “Barões do café” de possuir uma residência fixa no centro da capital do Estado de São Paulo, conheceu diferentes perfis a nível de usos predominantes das estruturas edificadas que a ladeiam. Permanecendo o uso residencial até meados dos anos 50 do século XX, com os seus palacetes alinhados rigorosamente segundo regras urbanísticas, rapidamente com o desenvolvimento económico da cidade foram substituídos por edifícios de escritórios e comércio, que ainda hoje persistem (passando a ser considerado como o “centro financeiro da cidade”). Durante a década de 60 e 70 do mesmo século, e seguindo as orientações de novas regulamentações relativas ao uso e ocupação do solo, a Avenida foi alvo de uma profunda reforma paisagística, da responsabilidade da arquitecta paisagista Rosa Grena Kliass e do escritório Cauduro e Martino, que introduziram os passeios de calçada portuguesa (calçadões)* na mesma. Hoje em dia, e com a importância económica cada vez mais deslocalizada para outras zonas da cidade, a Avenida Paulista está a tornar-se naquele que é um dos mais importantes centros culturais de São Paulo. Possuindo uma excelente acessibilidade por metro, bem como amplos passeios pedestres, os edifícios que ladeiam a avenida estão a receber ocupações bastante atractivas de uma população jovem. Além dos inúmeros e necessários estabelecimentos de restauração de qualidade e de conjuntos de lofts, que acompanham estes novos usos, localizam-se também neste espaço importantes equipamentos públicos de cultura, tais como por exemplo, o famoso museu Masp, e o Sesi, que possui um teatro para apresentações gratuitas de jovens companhias de teatro e uma biblioteca que permite o empréstimo gratuito de livros a qualquer pessoa que apresente um comprovativo de residente.

Paula Morais
Arquitecta

Nota *: “Até meados dos anos 1980, a avenida Paulista, em São Paulo, concentrava as sedes das principais empresas que operavam no país e, assim, figurava como ícone do capitalismo brasileiro. Mas, mesmo a famosa avenida não ficou imune à perversa lógica do mercado imobiliário, que foi deslocando o pólo empresarial para outras regiões paulistanas. Durante a década passada, empresas e profissionais liberais fundaram a Associação Paulista Viva, organização que tem como objetivo evitar o abandono da região e reafirmar sua importância na história e no futuro da cidade. Entre as realizações da Paulista Viva, uma das que tiveram maior repercussão foi a promoção de um concurso de idéias para o redesenho da avenida, com o intuito de melhorar sua qualidade urbana. O arquiteto José Magalhães foi o vencedor. No primeiro semestre de 2002, na esteira de uma série de reportagens de tevê que apontavam os problemas urbanos da avenida, a Paulista Viva, estimulada pela prefeita Marta Suplicy, encampou a idéia de realizar votação entre os freqüentadores do local para eleger um novo tipo de piso a ser implantado nas calçadas da Paulista.”
- fonte: Arcoweb