De: F. Rocha Antunes - "Bolhão: uma tradição de equívocos num mercado abandonado"
Meus Caros,
Uma das nossas fraquezas é a dificuldade em sermos razoáveis. O que se passa com as reacções à decisão da Câmara do Porto de entregar a gestão do Mercado do Bolhão, na sequência de um concurso público, note-se, é um bom exemplo disso.
O Mercado do Bolhão, como todos os outros mercados do Porto, foram mortos por todos nós quando decidimos passar a comprar os alimentos de que precisávamos nos supermercados que, entre muitas outras vantagens, estavam abertos a horas mais convenientes, e também quando passámos a exigir que as regras de higiene e segurança alimentar fossem aplicadas sem condescendências, e ainda quando os próprios governos e Câmaras criaram mercados abastecedores com novas acessibilidades, condições e dimensões capazes de responderem ao fornecimento de restaurantes e outros profissionais dos serviços alimentares. Os grandes concorrentes dos mercados são, para além das sempre culpadas grandes superfícies, todas as mercearias e frutarias de pequena dimensão que apostaram na conveniência da proximidade e tornaram definitivamente desnecessária a deslocação dos consumidores aos mercados. A percentagem de consumidores que frequentam os mercados deve ser equivalente à percentagem de pessoas que escrevem numa máquina de escrever e que só o fazem por incorrigível romantismo ou por incapacidade de mudarem de hábitos longamente enraizados.
Tal como as carvoarias, os latoeiros, os abegões e os almocreves, os mercados foram progressivamente perdendo a sua utilidade e, como tal, perderam sentido económico. A esmagadora maioria dos que me estão a ler não faz compras num mercado já não digo regularmente, mas nem sequer esporadicamente, se é que alguma vez o fez. Este dado, o do abandono dos mercados por todos nós, é uma realidade que nenhuma manifestação nem nenhuma súbita declaração de amor vai resolver.
Perante isto, o que pode fazer uma Câmara? Pode fazer de conta, como fez durante décadas a Câmara do Porto, com o apoio hipócrita de todos os políticos e candidatos a políticos que nunca deixaram de jurar manter o mercado nas inevitáveis sessões de beijinhos e palavrões de que vive o folclore eleitoral da cidade, para logo a seguir às eleições se esquecerem dele. A gestão de Fernando Gomes encomendou um projecto ao Arquitecto (que hoje encabeça uma manifestação para que o seu projecto seja recuperado, numa forma peculiar de o tentar realizar) e depois de o pagar percebeu, e bem, que o problema do Mercado do Bolhão não se resumia a uma questão de arquitectura e arquivou-o.
A principal questão que se coloca é a de se descobrir para que pode servir o edifício, que é classificado e que não pode ser demolido como dizem na sua inocência os jovens arquitectos que acompanham o autor na organização da manifestação, já que há leis e organismos que existem para garantir que isso não acontece (neste momento não há qualquer indício que não vão cumprir a sua missão, basta ler a entrevista que a Directora regional do IGESPAR - antigo IPPAR- deu ao JN recentemente para perceber isso).
A Câmara lançou um concurso público para encontrar quem, tendo uma ideia e capacidade de a realizar, pudesse, mantendo o edifício, assumir a gestão do mesmo, já que se há coisa que está demonstrada até à náusea é a incapacidade da Câmara para o fazer. O que se pediu foi que aparecessem as empresas que o queriam fazer. O projecto de arquitectura que tantos agora querem ver ainda não está feito, já que não foi um concurso de projecto, mas de concessão de um espaço em que foi negociado um programa. Como os meus amigos arquitectos tão bem sabem, um projecto de arquitectura sem programa nem quem o realize é, por muito que custe, inútil. Não conheço bem o programa que venceu, mas sei que terá que ser convertido em projecto de arquitectura e submetido à aprovação de todas as entidades que nesta cidade licenciam os projectos. Só quem nunca fez projectos nesta cidade é que pode achar que vai ser fácil aos promotores desse programa conseguirem fazê-lo sem respeitar o Património e os direitos que a lei confere a todos os ocupantes e comerciantes. Se a ideia dos organizadores da manifestação é a de provocarem o debate sobre o programa do Bolhão deveriam ter começado por aí, por uma proposta de programa sustentável, e não com a utilização do fantasma da demolição já que essa demolição não é legalmente possível ou com a defesa de um projecto de arquitectura que nem quem o encomendou quis fazer.
Eu, que até tinha uma ideia de programa, não apresentei nenhuma proposta ao concurso e, como tal, respeito muito quem o fez. Sobretudo sabendo o que ainda vão ter de fazer para que a desejada reabilitação do edifício do Mercado do Bolhão seja bem sucedida.
Francisco Rocha Antunes
gestor de promoção imobiliária
PS - Acho relevante declarar que sou responsável pela proposta que foi apresentada noutro concurso da mesma natureza promovido pela Câmara do Porto e que não tenho nada contra manifestações de cidadania, antes pelo contrário.