De: David Afonso - "Os artistas vão todos para Lisboa?"

Submetido por taf em Quarta, 2007-08-08 17:06

Dizia o Reitor da UP numa célebre entrevista que «Os empresários e os artistas vão todos para Lisboa». Creio que todos nós partilhamos desta percepção das coisas, incluindo os amigos lisboetas. Resolvi, no entanto, tirar a limpo se esta percepção tem algum fundamento no que diz respeito aos artistas. Não é uma questão menor porque um dos indicadores da "boa saúde" de uma cidade é a sua capacidade de gerar, reter e atrair criadores. Por estranho que possa parecer a muita boa gente, as artes são um factor de desenvolvimento e de regeneração urbana. O Porto atravessou um período muito promissor em grande parte pelo efeito Serralves (para se perceber bem a importância desta instituição, é imaginar o que seria de nós se ela um dia fosse deslocalizada para Lisboa), da aventura da Miguel Bombarda e da renovação da FBAUP, para além de outros actores menores e de um circuito mais ou menos informal de projectos e espaços alternativos. Existe entre nós um verdadeiro formigueiro criativo, não obstante a escassez de actores institucionais privados ou públicos e o filistinismo militante da autarquia.

O projecto Anamnese, promovido pela portuense Fundação Ilídio Pinho e liderado por Miguel Von Hafe Pérez (devo dizer que, enquanto vereador da oposição, o seu desempenho é decepcionante, aliás toda a oposição socialista é de uma mediocridade confrangedora, o que se reflecte na qualidade da nossa democracia local mas adiante...) constituiu uma base de dados sobre artistas portugueses (e estrangeiros a residir em Portugal). Aí é possível recolher informação sobre a sua origem e o local onde vivem e trabalham, para além de alguma (pouca) informação sobre a sua produção propriamente dita. Não sendo um recenseamento exaustivo da população de criadores, parece-me ser uma amostra bastante extensa e representativa da realidade.

O retrato do país que estes dados nos permitem traçar vai ao encontro da ideia de que «os artistas vão todos para Lisboa», ou quase. Assim, de um universo de 368 artistas cerca de 56% concentram-se na capital, 21% no Porto e os restantes pelo país fora. Aliás, o Porto não parece ter a mesma capacidade que Lisboa para reter os criadores: 65% dos artistas que nascem no Porto ficam por cá a trabalhar e no caso de Lisboa esta percentagem sobe para 80%, ou seja, há menos naturais de Lisboa a migrar do que tripeiros. Esta fuga parece ser compensada pela sua capacidade de atracção, já que 51% dos artistas residentes no Porto vêm de fora, sobretudo da sua área de influência natural (Minho, Beiras e Trás-os-Montes). Lisboa apesar de ter apenas 40% da sua população de artistas oriundos de fora da cidade, estes vêm de todo o lado, o que estará de acordo com o perfil de Lisboa como maior centro nacional de produção artística.

Que conclusões podemos tirar?

  • 1º) Três quartos dos criadores encontram-se, como seria de esperar, nos dois grandes aglomerados urbanos;
  • 2º) A desvantagem do Porto relativamente a Lisboa no número de artistas residentes é enorme;
  • 3º) Porto não consegue reter os seus criadores de uma forma tão eficaz como Lisboa;
  • 4º) Porto atrai sobretudo criadores oriundos do seu Hinterland, não sendo capaz, ao contrário de Lisboa, de atrair criadores do resto do país.

É óbvio que é necessário fazer qualquer coisa. Todos os dias perdemos dinheiro, prestígio, identidade e população qualificada. Para inverter este processo há que repensar a distribuição dos dinheiros públicos porque o Norte tem vindo a ser sistematicamente preterido a favor de Lisboa na distribuição dos apoios aos criadores e à Cultura (mais tarde voltarei a este assunto). Isso é o que os outros podem fazer por nós. E o que podemos fazer por nós próprios? Muita coisa. É só preencher as lacunas. Alguns exemplos: a) organização de eventos de carácter periódico com dimensão internacional no domínio das artes visuais (a boa notícia é que a UP já está a trabalhar nisso); b) criar patamares intermédios de trabalho e exposição para jovens criadores (se Matosinhos vai ter uma extensão de Serralves, por que razão não há-de a Baixa do Porto ter também ela uma extensão do Museu de Arte Contemporânea vocacionada para os jovens criadores?); c) incentivar o desenvolvimento de circuitos culturais alternativos, bastando para isso (deixar) dar uso ao vasto património edificado devoluto; d) avançar de uma vez por todas com as obras de requalificação da Miguel Bombarda.

PS: O caso da Casa do Eça na Granja é exemplar. Ninguém sabe de nada, ninguém assume a responsabilidade, incluindo Filipe Menezes que não se atreve a dar a cara nos maus momentos. Não há foguetes, não há Menezes. E entretanto não rolam cabeças? Havendo conivência com o pato bravo e/ou apenas incompetência por parte da Câmara, o caso é demasiado grave para passar em branco. Às vezes tenho a impressão de que estamos a regredir. Em Março de 1915 a Casa de Camilo em S. Miguel de Seide ardeu, ao que consta, por acidente (não havia nenhum pato bravo na história). O que é certo é que o acontecimento comoveu a população do Porto e através dos jornais procedeu-se de imediato a uma subscrição pública para a sua reconstrução. Em 1915 as condições de vida não eram tão boas como as actuais e a agitação política descambava muitas das vezes para a desordem pública (civil e militar) pelo que ninguém poderia saber com o que seria o dia de amanhã e mesmo assim reagiram com brio. Hoje, do fundo do nosso conforto burguês nem um ai nos sai. Será que perdemos o Norte?

David Afonso
attalaia@gmail.com