De: Manuel Leitão - "Ontem, ao fim da tarde, na Baixa do Porto"
Acabam de bater as sete da tarde. Desço Santa Catarina, vindo de Fernandes Tomás, com muita gente ainda na rua. Penso aproveitar este breve passeio para comprar algumas peças de roupa. À esquina da Rua Formosa, empurro a porta duma loja que vende peúgas. A porta resiste mas confirmo a tabuleta onde se lê “Aberto”. Lobrigo, no interior, um indivíduo de meia-idade que se aproxima e quando penso que me vai franquear a entrada, limita-se a virar a tabuleta para o lado onde está escrito “Fechado” e vira-me as costas sem mais. Fico fulo e impotente ao mesmo tempo, remoendo pensamentos menos positivos em relação ao homem e às minhas futuras relações comerciais com a sua empresa. Prossigo e, três ou quatro lojas mais adiante, faço nova tentativa de gastar dinheiro. Desta vez a porta está aberta. Porém, ao entrar na loja, sou avisado, por uma das três funcionárias presentes, que “já está fechada”.
Retrocedo para a rua e olho para o relógio: são sete e dez. Como não estou decididamente em dia de sorte, resolvo, de momento, desistir das compras. Mais à frente, as obras em Santa Catarina / Passos Manuel. Nuvens de poeira sobem do piso de terra não regada, calcado pelos transeuntes, um verdadeiro caminho de cabras. Ninguém a trabalhar, as obras que esperem. Desço Passos Manuel, dando e levando encontrões, pelo carreirinho deixado livre pelos “trabalhos”. Passo à porta duma discoteca que anuncia a sua festa de encerramento para o último dia de Junho passado. Indago nas redondezas e sou informado que é por causa das obras, que esperam reabrir em Setembro, após dois meses de “férias”. Atravesso a D. João I, grande espaço deserto, à excepção da paragem de autocarros onde meia dúzia de cidadãos vira as costas à produção laferiana. Mais à frente, a avenida ou “o deserto, parte 2”. Subo Elísio de Melo, pelo carreiro deixado pelas obras e “piro-me” delas evitando ao cimo da Praça Filipa de Lencastre a Rua de Ceuta e virando primeiro pela Rua de Aviz e depois pela de Santa Teresa. Ao cimo desta, nova frente de “combate”: aí estão outra vez as obras e a poeira no ar. A trabalhar, como em todo o percurso, ninguém. Consigo esgueirar-me para a Praça dos Leões. Espreito para a Praça de Lisboa para ver se já foi fechada, entaipada, gradeada, policiada ou seja lá o que for, para evitar vergonhas e, quem sabe, tragédias. Nada: é claro que como a proposta veio do Rui Sá não interessa, Dois gandulos que por ali vagueiam olham-me com “curiosidade”. Acho por bem “pôr-me ao fresco” rapidamente. Desço as Carmelitas e por aí abaixo, em mais alguns minutos, estou de novo em Santa Catarina. Lembro-me das peúgas. Entro no Shopping Via Catarina. Resolvo o problema do aconchego dos pés. Saio pela porta secundária, de Fernandes Tomás. Mais dois passos e estou em casa.
São 8 da tarde. Nas minhas costas, “cresce o monstro”, como diz um vizinho meu. É outro shopping, o Plaza, onde de dia e de noite se trabalha com afinco e ruidosamente para que a abertura não tarde. Depois será a vez do Bolhão Shopping e, já nada me admira, outros mais com toda a certeza. É giro, não é? Polícia de giro é que não. Há quatro anos que aqui vivo e nunca vi nenhum. Apenas os que uma noite me apareceram de carro depois de ter chamado o 112 (chegaram uma hora depois), para saber se o barulho que vinha do “monstro” e me impedia de dormir estava autorizado. Nada me foi informado sobre tal autorização ou falta dela. Pelos vistos esse direito não me é reconhecido. Ao contrário, ocupar parte da via pública e locais de estacionamento camarário, a que na qualidade de morador tenho direito (pagando no início de cada ano, claro!), é um “direito” do construtor do “monstro”. Assim, vou pagando duplamente: à Câmara e à garagem próxima quando tenho necessidade de estacionar o meu carro e os poucos lugares de rua legalmente disponíveis estão ocupados. Passo ao jantar, mas hoje ao relembrar este passeio de ontem, nem me recordo do que comi: devo ter ficado a pensar como é que o “monstro” que inicialmente se apresentou como um “centro de lazer” com 7 cinemas 7, piscina, etc., alterou depois, sub-repticiamente, o projecto inicial e agora, em vez da sétima arte, parece que vamos ter uma discoteca (talvez para substituir a que teve de fechar em Passos Manuel…), piscina “de grilo”, etc..
Como a minha terra é linda, como a tratam mal e aos seus habitantes e como é que a gente se vai ver livre disto…