De: Jorge Ricardo Pinto - "Memória"
Recordo-me de uma sala cheia na Fundação Engº António de Almeida em completa desobediência civil, sugerindo o levantamento das pedras cinzentas nas noites seguintes aos dias em que os pedreiros as colocavam, como resposta à abusiva granitização sizentista dos nossos Aliados e da nossa “Praça” (como referiam simplesmente os dísticos dos desaparecidos carros eléctricos). Vamos lá a acordar toda essa massa adormecida (excepções à parte) e combinemos mais um dia e hora para novas manifestações de intenção, desta feita com consequências no terreno, correctas ou incorrectas politicamente. Não estaremos lá para criticar os autores do projecto, apenas o seu projecto que não é prioritário (porventura completamente desnecessário…), desrespeitador da memória da cidade, pouco democrático (ou nada…) no processo e contraproducente para a valorização da cidade.
Num momento em que o mundo começa a acordar contra esta normalização que torna os espaços todos cinzentos, monótonos e, acima de qualquer outro defeito, todos iguais (veja-se o protesto madrileno, ou os projectos para Leça ou Vila do Conde), é apropriado evocar novamente esta memória, colectiva ou individual, de rebelião (como ocorreu na Invicta ao longo de todo o século de Oitocentos) ou de respeito por quem nos precedeu, pelos espaços que criam a identidade da cidade que se diz “Nação”.
Relativamente ao Rio “que ninguém pode parar”, de há muito que acho as águas deste rio se parecem a um charco turvo, gélido e pantanoso, arrefecendo uma cidade que definha de ano para ano e onde habitam um conjunto de sapos que temos de engolir periodicamente, como as constantes quezílias, que a um ritmo quase diário povoam as primeiras páginas dos jornais; como com o desaproveitamento e amesquinhamento de obras anteriores (algumas ainda abandonadas, como o “transparente”, outras entregues a custo quase simbólico a empresas privadas, como o Palácio do Freixo); como com as iniciativas “emblemáticas e corajosas” (porquê? para quê?), como a “erradicação” de arrumadores, a demolição de ilhas e expulsões de bairros sociais (sem debate de alternativas, nem avaliação ponderada das consequências); como com as guerras intermináveis e incompreensíveis em que todos perdem, seja a linha da Boavista (talvez para pagar o rali e as construções não autorizadas do Parque da Cidade?), seja o túnel de Ceuta (que em época eleitoral veio mesmo a calhar ao discurso provinciano e de mártir da malvada oposição e dos lisboetas!), seja com o campeão FC Porto, com o Público, com o Jornal de Notícias, com os trabalhadores a propósito das horas extraordinárias e com quem mais vier que não veja nele o iluminado e ouse algum dia criticá-lo.
Sinceramente, estou farto destas operações de marketing, seja a propósito do retorno à Baixa, que nos pede para ver como ela já está bonita (onde?!); seja a propósito da Cidade da Ciência em que não se diz o que a Câmara fez nos últimos 5 anos pela dita, ou pelos patrocínios fantasma aos estágios universitários; seja pelo site do tipo norte-coreano e de tiques estalinistas ou hitlerianos de “domesticação forçada” (porque quem recebe subsídio da CMP não pode criticar a CMP!), curiosamente associados ao 25 de Abril e à celebração da liberdade.
É por isso que é fundamental que a cidade tenha memória e quaisquer que sejam as alternativas, que entre elas se encontre quem se acredita poder fazer melhor.
Encontremo-nos pois pela memória. Memória por um espaço público que não se deseja estático, mas respeitado; por uma identidade que não se deseja antiquada, mas perene; por uma cidade que não se deseja museu azedo (como escreveu José Gomes Ferreira), mas completa, na sua dimensão histórica, funcional e identitária.