De: Cristina Santos - "Os indomáveis"
Em meados dos anos 90, em algumas escolas de bairros sociais do Porto, os professores leccionavam num clima de demissão. Em primeiro lugar eram ameaçados tanto por alunos como pelos seus educadores, em segundo pelo Ministério que lhe exigia justificações transcendentes quando reprovavam alunos totalmente incapazes, em terceiro pelo ambiente onde a escola se inseria. Neste aparato as palavras ditas aos meninos eram medidas ao milímetro, qualquer repreensão fora do tom dava direito a insultos, ameaça e quando o aluno nada podia contra o professor apelava ao exército familiar, que reagia violentamente. A solução era a total indiferença – não se meta, não reaja, se aderem, aderem, se não aderem deixe ir. Assisti a cenários do tipo mãe, irmã, tia, avó aos gritos contra a professora que se mantinha dentro dos portões cheia de medo. Não se chamava a Polícia, porque era um remédio que só agonizava as pretensões, não naquele dia, mas pelo resto dos dias do ano lectivo.
Se havia alunos que junto da família continuavam a dizer que foram agredidos ou insultados, havia aqueles que encolhiam os ombros e envergonhados iam acenando que sim, quando a família aos gritos lhe exigia «– A professora não te bateu, não tenhas medo de dizer, diz, diz que te bateu» Não havia professor que se atrevesse a ligar para os educadores e alertar do comportamento dos filhos, o tema fascismo, salazaristas e argumentos do género eram frequentemente utilizados contra o ensino.
As auxiliares recebiam piropos, levantavam-lhes a saia e isto numa escola do ensino básico. Eu passei por lá, não tinha muitos problemas porque a função passava por integrar, não representava grande autoridade, portanto era mais ou menos tolerada, mas um belo dia estava no recreio com 17 crianças a fazer exercícios, quando de repente uma pedra fungou perto da minha cabeça, não sei quantos minutos parei para reagir, a minha vontade foi devolver a pedra à criança de 10 anos que do exterior continuava a tentar atingir-me. As outras crianças fugiram, eu dirigi-me ao rapaz sempre a temer, galguei o muro, com a proximidade, ele deixou de me atirar pedras, foi-se afastando, mas a cada passo que dava para trás insultava-me aos gritos, numa fúria que não conseguia entender.
Fiz inúmeras tentativas de me aproximar, nunca fui bem sucedida, ele odiava-me a mim e a todos os adultos da escola. Sentava-me perto dele e ele levantava-se, tentava falar com ele e ele nada, no meio dos outros quando podia dirigia-lhe o assunto e ele mandava-me abaixo de Braga. Com o tempo pus uma nova estratégia (involuntária) em prática, a total indiferença perante a sua presença. Essa estratégia também falhou, ele percebeu que a única forma de me enfrentar era agredindo inicialmente os seus amigos fazendo lutas e posteriormente agredindo os pacatos e indefesos. Foi aí que passei a dar ordens severas, e pô-lo fora da sala, para meu espanto a ordem era acatada com grande alegria e entusiasmo, e algumas vezes com chuva de pedras na fachada. Mas mandá-lo para fora acontecia depois de ver o soco que ele deferia nos indefesos, que me olhavam de frente como quem pede que por eles interceda, e eu pouco mais podia fazer do que mandá-lo embora e passar a mão na cabeça do agredido.
O miúdo tinha apoio especial, psicóloga… e uma escola inteira que ele liderava com valentia. As vezes ponho-me a pensar que podia ter feito melhor com ele, mas não encontro estratégia, no entanto há uma coisa de que me lembro sempre: da única vez que lhe presenciei semelhanças com as outras crianças, na saída da escola o pai ordenava-lhe que fosse à mercearia e ele de birra chorava, batia o pé e dizia - não vou, não vou… Hoje, uma das minhas maiores curiosidades é saber onde ele foi, talvez assim pudesse perceber o espírito e encerrar definitivamente este capítulo das ciências humanas.