De: Cristina Santos - "Centro Histórico"

Submetido por taf em Quarta, 2006-11-01 16:04

Centro Histórico

No Centro Histórico não se estranha que as pessoas nos interpelem, nos salvem mesmo que não nos conheçam, os marroquinos por exemplo dizem Bom dia a quase todos os turistas que passam. Dirão vocês que os marroquinos não fazem parte da classificação da UNESCO, mas são estes que comprovam a essência humana que caracteriza as gentes do Centro Histórico que a todos acolhem como vizinhos; quem se muda para aquelas ruas nunca mais se sente só.

É um universo de pessoas emotivas, reagem aos primeiros impulsos, à tradição e ao dever do cumprimento das tarefas de socialização.

As mulheres já não usam os tanques públicos, mas mantêm o orgulho na roupa corada exposta na fachada, como se insistissem em negar a existência da máquina de lavar. Mantêm os vasos nas varandas e num ocioso cumprimento de dever regam-nos contra a ferrugem que escorre há anos da serralharia, são tudo comportamentos de socialização, rituais, como ajudar o vizinho, limpar a casa aos sábados de manhã - a mulher mais despachada é mais louvada no bairro.

A D. Augusta conta-nos que antigamente pegava em 2 baldes de água, esfregava aquele soalho que até ficava a brilhar, viviam 8 famílias naquele prédio, os meninos dormiam todos num quartinho uns virados para a cabeça, outros para os pés, eram 5 mais 1 menina. Dava-lhes banho no quarto do fundo, enchia um alguidar de água e com uma caneca lava-lhes a cabeça.

A D. Augusta insiste que o soalho não apodrecia, abriam-se aquelas janelas de par em par, secava tudo num instante e não era aquilo que hoje se vê, tudo a cair.

As opiniões são tão convictas que perante elas a gente nova retém-se a olhar para os edifícios, fachadas com mais de 100 anos, excesso de lotação, mau uso e mau zelo, travejamentos de madeira intactos, telhados apodrecidos, mas afinal que segredo mantêm aquelas pedras gastas?

Não conseguimos superar esta arte, por mais técnicas que usemos as cantarias reabilitadas ficam sempre piores que as velhas, e depois levantar um soalho velho, refazer um telhado e verificar que aquele prédio tem troncos de madeira praticamente novos, que as fachadas não se mexem e são de fácil recuperação, isto aninha-nos a um canto com medo de não conseguir refazer uma arte com a resistência que aquela apresenta, uma arte que dure 150 anos, sob um uso intenso e abusivo.

Uma arte que permitiu construir e enfeitar, todos os edifícios têm um desenho, um azulejo, uma característica que o distingue, será que daqui a 100 anos vão dizer o mesmo daquelas letras em bronze que afixamos nos prédios de condomínio?

E as janelas? A D. Augusta diz que tinham muitas janelas porque não havia luz, agora mesmo com luz mantemos os estores fechados, portanto não se trata só de edifícios também se trata de modos de vida, no mundo global não há lugar para personalidade, para ostentar a data num edifício, é tudo muito inócuo e passageiro.

Mas devíamos cunhar a data de construção nos edifícios que sabemos que vão ficar para a posteridade... Pois as conversas no centro histórico dão-me sempre algo para matutar.
--
Cristina Santos